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Práticas de Leitura e Escrita - TV Escola

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Nesse sentido, se a graça <strong>de</strong>corre do inesperado, do nonsense, <strong>de</strong>corre também do fato <strong>de</strong> que as palavras em<br />

questão são precisas, exatas, como numa expressão matemática. Tal como nas senhas, são essas e não outras. Não<br />

são permitidas alterações, nem adulterações.<br />

Tal exatidão nos chama a atenção para a importância da escolha das palavras, para a atenção em sua composição,<br />

suas configurações e texturas. As palavras não são indiferentes. Produzem sensações por sua forma, seu<br />

tamanho, seus acentos. Quem já não brincou:<br />

Ou:<br />

O tempo perguntou ao tempo,<br />

Quanto tempo o tempo tem?<br />

O tempo respon<strong>de</strong>u ao tempo<br />

Que o tempo tem tanto tempo<br />

Quanto tempo o tempo tem.<br />

O rato roeu a roupa do rei <strong>de</strong> Roma.<br />

Como em todos os trava-línguas, a palavra aqui é também precisa. O sentido, o <strong>de</strong>safio e o prazer do jogo resi<strong>de</strong>m,<br />

justamente, na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> repetir com precisão sons que são próximos, facilitando o engano. Tropeçar<br />

nas sílabas, nas palavras, coloca o jogador fora, ganhando o <strong>de</strong>safio, aquele que é capaz <strong>de</strong> se manter fiel e atento<br />

à língua e às suas exigências.<br />

Tais brinca<strong>de</strong>iras mostram, pois, que além dos significados, as palavras possuem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, características<br />

sensíveis que as tornam insubstituíveis e únicas. Saber tirar partido <strong>de</strong>ssa especificida<strong>de</strong> confere sabor à língua, a<br />

expressão ganha em colorido e prazer, po<strong>de</strong>ndo atingir o estatuto da arte. Afinal, não existe outra a qualida<strong>de</strong> maior<br />

do escritor que e <strong>de</strong> escutar as palavras, observá-las e combiná-las <strong>de</strong> forma única e pessoal. Saber ser exato, preciso,<br />

enxuto, dosar o mais e o menos, ser certeiro.<br />

Claro, a exatidão <strong>de</strong>manda <strong>de</strong>dicação, cuidados, atenção. As palavras não se entregam com facilida<strong>de</strong> à<br />

primeira investida do falante. Elas <strong>de</strong>mandam escolhas argutas e sensíveis, paciência, capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escuta, <strong>de</strong><br />

visualização, <strong>de</strong> movimentação. Se elas são capazes <strong>de</strong> traduzir sentimento em obra, emoção em conhecimento,<br />

pensamento em ação, exigem, para tanto, cultivo e entrega, qualida<strong>de</strong>s que não combinam com falta <strong>de</strong> compromisso<br />

e com <strong>de</strong>scuido.<br />

Numa época em que a velocida<strong>de</strong> toma <strong>de</strong> assalto todos os aspectos <strong>de</strong> nossa vida, vai ficando cada vez<br />

mais difícil atentarmos para as palavras, prestarmos a <strong>de</strong>vida atenção a elas, respon<strong>de</strong>rmos a<strong>de</strong>quadamente nos<br />

termos que elas exigem. A massificação, a mercantilida<strong>de</strong>, a burocratização, a banalização também imperam<br />

nesse domínio, dificultando o cultivo necessário das palavras e da língua em seus termos constitutivos. Desse<br />

modo, reaver o esplendor e o brilho do verbo é tarefa a ser realizada na contramão da contemporaneida<strong>de</strong>,<br />

mas situada nos territórios da fineza do espírito, lá on<strong>de</strong> se exercitam os artistas, os escritores, os poetas e todos<br />

aqueles que se negam a aceitar as banalida<strong>de</strong>s como estilo <strong>de</strong> vida, optando pelas veredas nada fáceis, mas<br />

irresistíveis, da criação.<br />

Educar, portanto, o ser sensível, inteligente, criador e criativo é exercitá-lo nos domínios da palavra, explorando<br />

e brincando com sonorida<strong>de</strong>s, imagens, ritmos e cadências, num jogo salutar <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s<br />

que somente a atitu<strong>de</strong> interessada e interessante é capaz <strong>de</strong> realizar. Há trabalhos estupendos nesse sentido,<br />

direções pedagógicas e educacionais preciosas, como as indicadas, por exemplo, pela Gramática da Fantasia, do<br />

italiano Gianni Rodari.<br />

Palavra e significado.<br />

Em “Corda bamba”, um dos mais belos livros <strong>de</strong> Lygia Bojunga, há um capítulo excepcional, intitulado<br />

Aula particular. Maria, uma menina que acabara <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r os pais num aci<strong>de</strong>nte no trapézio do circo em que<br />

trabalhavam, ao mudar-se para a casa da avó, é acompanhada por uma professora particular, já que estava fraca na<br />

escola. O episódio apresenta, assim, uma situação especial, em que a menina <strong>de</strong>ve apren<strong>de</strong>r conteúdos escolares<br />

consi<strong>de</strong>rados indispensáveis, mas apresentados <strong>de</strong> modo completamente distante <strong>de</strong> suas vivências e interesses,<br />

sem vínculos com sua história, suas condições e, sobretudo, suas perdas. Além <strong>de</strong> ter perdido os pais queridos,<br />

Maria se acha em ambiente diferente do <strong>de</strong> circo, on<strong>de</strong> existem todas as condições materiais, mas com vida e<br />

valores completamente distintos dos que ela conhecia e gostava.<br />

Nesse aspecto, a Aula particular é uma lição <strong>de</strong> como as palavras po<strong>de</strong>m transformar-se em sinais vazios, <strong>de</strong>stituídos<br />

<strong>de</strong> sentido, incapazes <strong>de</strong> tocar, <strong>de</strong> mobilizar, <strong>de</strong> comover quem quer que seja, muito menos uma garota dilacerada<br />

por toda espécie <strong>de</strong> perdas: afetivas, sociais e culturais. Em meio ao cenário da sala <strong>de</strong> jantar on<strong>de</strong> ocorre, a aula não está<br />

apenas espacialmente <strong>de</strong>slocada. É um amontoado <strong>de</strong>sconexo <strong>de</strong> vocábulos que buscam tocar o espírito da menina, sem<br />

produzir, no entanto, a menor ressonância. Esforça-se a professora, esforça-se Maria, mas o que vai se suce<strong>de</strong>ndo não é<br />

senão uma comédia <strong>de</strong> erros, evi<strong>de</strong>nciando uma mestra que não atinou minimamente para o sentido das palavras e para<br />

uma criança apavorada e perdida entre signos, que a massacram e agri<strong>de</strong>m.<br />

62 Salto para o Futuro

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