Práticas de Leitura e Escrita - TV Escola
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Para a escritora Ana Maria Machado, em seu interessante livro “Como e por que ler os clássicos universais<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo” (2002), no qual <strong>de</strong>dica um capítulo aos contos da tradição oral, o homem conta histórias para tentar<br />
enten<strong>de</strong>r a vida, sua passagem pelo mundo, para ver na existência uma espécie <strong>de</strong> lógica. Segundo ela, cada texto<br />
e cada autor lidam com elementos diferentes nessa busca, e vão a<strong>de</strong>quando formas <strong>de</strong> expressão e conteúdo, <strong>de</strong><br />
modo a que se mantenha o sentido e uma coerência interna profunda. Mexer neles é alterar esse sentido.<br />
Por isso, cabe aqui compreen<strong>de</strong>r, ainda que <strong>de</strong> forma breve, alguns <strong>de</strong>sses gêneros, principalmente, a fábula,<br />
o conto <strong>de</strong> fadas, o conto maravilhoso e os causos ou contos populares, uma vez que são essas as narrativas mais<br />
comumente contadas às crianças, ainda hoje.<br />
3.1.3. Fábulas<br />
As fábulas têm sua origem tão remota que é difícil fixá-la, mas sabemos que foi Esopo, no século VI a.C., na<br />
Grécia antiga, o responsável por introduzir as fábulas na tradição escrita. Muitos séculos <strong>de</strong>pois, a escrita das fábulas<br />
foi retomada por diversos escritores do mundo inteiro, sendo que, no século XVII, coube ao acadêmico francês La<br />
Fontaine, o redimensionamento e a renovação <strong>de</strong>sse gênero tão antigo.<br />
A fábula é uma narrativa curta, que apresenta, via <strong>de</strong> regra, uma moralida<strong>de</strong> ao final: essa moralida<strong>de</strong>, em<br />
última análise, é um provérbio, uma máxima reveladora <strong>de</strong> uma visão estática <strong>de</strong> mundo, que expressa o senso<br />
comum. De modo geral, as personagens são animais que assumem comportamento humano, revelando questões<br />
relacionadas às relações éticas, políticas ou questões <strong>de</strong> comportamento.<br />
Trabalhar com fábulas po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser um ponto <strong>de</strong> partida para a reflexão a respeito do próprio <strong>de</strong>terminismo<br />
formulado acerca da sabedoria prática, questionando os padrões <strong>de</strong> comportamento e as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
que transparecem nessas narrativas. Por esse motivo, numa pedagogia da leitura, quem trabalha com tal gênero <strong>de</strong><br />
texto <strong>de</strong>ve saber com clareza que questões colocar para o ouvinte ou leitor diante das fábulas. Po<strong>de</strong>-se, por exemplo,<br />
estabelecer um contraponto com textos mais contemporâneos, ou mesmo estimular a produção <strong>de</strong> fábulas em que<br />
o comportamento das personagens seja alterado.<br />
Monteiro Lobato, na primeira meta<strong>de</strong> do século XX, já fazia isso. Veja-se o exemplo da fábula A cigarra e<br />
as formigas: I - A formiga boa e II - A formiga má 2 , em que, no texto I, altera-se o <strong>de</strong>terminismo do texto fonte, A<br />
cigarra e a formiga, na versão <strong>de</strong> La Fontaine 3 . Nessa última versão, a cigarra, que cantara durante todo o verão, pe<strong>de</strong><br />
emprestado à formiga “algum grão, qualquer bocado, até o bom tempo voltar”, mas, mesmo comprometendo-se a<br />
pagar-lhe o empréstimo com juros e sem mora, a formiga se nega a prestar-lhe qualquer auxílio.<br />
Na versão <strong>de</strong> número II, Lobato se apóia no texto do autor francês, mas acentua o caráter perverso da formiga<br />
e ressalta toda a fragilida<strong>de</strong>, sofrimento e humilda<strong>de</strong> da cigarra, com o claro intuito <strong>de</strong> que o leitor <strong>de</strong>la se<br />
apie<strong>de</strong>, e com ela se solidarize.<br />
Entretanto, na versão <strong>de</strong> número I, Lobato <strong>de</strong>sconstrói a fábula, pintando-nos uma relação <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>,<br />
tolerância e respeito mútuo entre as personagens. Nessa versão, a formiga reconhece o valor da cigarra e <strong>de</strong><br />
seu canto, que a distraía durante o trabalho nos dias quentes <strong>de</strong> verão, e, aten<strong>de</strong>ndo aos seus apelos, acolhe-a até<br />
cessarem os rigores do inverno.<br />
Sendo um gênero que explicita modos <strong>de</strong>vidos e in<strong>de</strong>vidos <strong>de</strong> comportamento, atuando sobre o leitor numa<br />
perspectiva predominantemente ética, as fábulas não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> lhe proporcionar, no entanto, uma leitura, a um<br />
só tempo crítica e prazerosa.<br />
3.1.4. Contos <strong>de</strong> fadas e contos maravilhosos<br />
Seguiremos, aqui, os estudos <strong>de</strong> Nelly Novaes Coelho (1991) sobre essas duas formas <strong>de</strong> narrativa, em<br />
que o maravilhoso e o fantástico se tornam mais visíveis e se <strong>de</strong>stacam, principalmente, pela divulgação que<br />
alcançaram através dos séculos. São i<strong>de</strong>ntificadas como formas distintas, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> duas atitu<strong>de</strong>s humanas<br />
por elas expressas: a luta do eu, empenhado em sua realização interior profunda, no plano existencial, ou em<br />
sua realização exterior, no plano social.<br />
No conto <strong>de</strong> fadas, transparece sempre a atitu<strong>de</strong> mais voltada para a realização interior das personagens,<br />
no plano existencial. Melhor dizendo, são narrativas que tendo ou não a presença <strong>de</strong> fada apresentam em seu<br />
núcleo, a questão da realização essencial do herói ou da heroína, geralmente ligada a alguns ritos <strong>de</strong> passagem<br />
<strong>de</strong> uma ida<strong>de</strong> para outra ou <strong>de</strong> um estado civil para outro. Daí porque guardam marcas simbólicas da puberda<strong>de</strong><br />
2 In: LOBATO, Monteiro. Fábulas. 45ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.<br />
3 No primeiro volume das Fábulas <strong>de</strong> La Fontaine, publicado pela Editora Itatiaia, Belo Horizonte, em 1989, com tradução <strong>de</strong> Milton Amado e<br />
Eugênio Amado.<br />
86 Salto para o Futuro