projetos de rearranjos sociais: escravos, índios e negociantes nos ...

Índia e a China afiguram-se como referenciais ao mundo moderno impregnado de
individualismo. Em Silva Lisboa, o indivíduo, o trabalho e o mercado são aproximados pelas
funções sociais que podem desempenhar no âmbito de uma sociedade afirmada pelo autor
como desigual e regulamentada pelo Estado. Defende-se o lucro e a acumulação individual,
todavia, o futuro Visconde de Cairu censura-as quando o indivíduo quer sobrepor-se ao bem
comum, qual seja, a estabilidade das redes de sociabilidades e das autoridades cabíveis ao
Estado.
O liberalismo constitui-se tanto em alternativa às doutrinas fisiocráticas – avaliada
pelo autor como seita opositora do progresso comercial – e, no âmbito da administração
colonial, torna-se política para dissipar conflitos entre grupos econômicos coloniais,
autoridades locais e as legislações régias. Aproximando-se os interesses, afirma Silva Lisboa,
as condições desiguais poder-se-iam rearranjar-se, os grupos sociais – notando-se partícipes
da dinâmica econômica, por exemplo – atenderiam, por fim, ao princípio da reciprocidade
das precisões, a partir das quais seriam delineadas o equilíbrio entre a iniciativa individual e a
quantidade e constância das mútuas relações comerciais. Silva Lisboa, portanto, compreende
a reciprocidade, seja entre os colonos ou entre as nações, como ofício de hospitalidade e de
pronta justiça. Existiriam, pois, grupos ou indivíduos em diferentes condições de posições de
deflagrar a ação que ensejará a reciprocidade. Proceder-se identificação das relações sociais
presentes ou ditar-lhes quaisquer mudanças, implica, para Silva Lisboa, na imaginação de
uma totalidade, na qual, ainda que haja mobilidade, as ordens de dignidades do passado
condicionam o reconhecimento das diferenças. No pensamento hierárquico de Silva Lisboa,
portanto, o liberalismo é um projeto acerca de rearranjo na ordem social da colônia, não um
argumento para sua transfiguração.
Conforme Dumont, a sociedade nunca deixou de ser sociedade, enquanto totalizada,
no dia em que ela se quis apenas uma coleção de indivíduos. A ideologia individualista
relegou a discussão sobre as hierarquias e desigualdades modernas à condição de tabu. Porém,
as razões dos afastamentos e das gradações permaneceram. Nas sociedades holísticas – e nas
elaborações de critérios modernos das diferenças sociais – conforma-se uma estrutura do
englobante-englobado, na qual um elemento do conjunto afigura-se, ao mesmo tempo,
inferiorizado em relação a outro elemento, mas hierarquicamente superior a outro elemento da
estrutura. Analisar de hierarquias pressupõe desvincular-se de concepções de relacionamentos
unidimensionais. As conformações hierárquicas, portanto, não se apresentam como simples
98 Idem, p. 20.
94