Um traço marcante nas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> linguagem que vimosestu<strong>da</strong>ndo é o seu po<strong>de</strong>r metafórico. As palavras, textos,canções, telas, poesias têm mais <strong>de</strong> um ou diversos significados.E ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>sses sentidos po<strong>de</strong> nos ensinar, nos alertar, nos provocar,nos fazer refletir, questionar, sorrir, chorar, <strong>da</strong>nçar, reclamar,recor<strong>da</strong>r, sentir sau<strong>da</strong><strong>de</strong> etc. Há um encanto ou uma magiana maneira como eles nos contam sobre a vi<strong>da</strong>, nos tocam ou,simplesmente, nos fazem existir e resistir.Exemplo <strong>de</strong>ssa lição <strong>de</strong> coisas ou <strong>de</strong> significados é um outromito <strong>de</strong> Orunmilá, o primeiro babalaô — palavra que querdizer Pai do Segredo. Oxalá pediu que Orunmilá lhe preparasse omelhor prato que existisse. Orunmilá preparou a língua. Satisfeitocom a comi<strong>da</strong>, Oxalá pediu que ele também mostrasse o pior prato.E, para a surpresa <strong>de</strong> Oxalá e <strong>de</strong> todos, Orunmilá tambémapresentou a língua como o pior prato.Oxalá estava achando tudo muito estranho, até que Orunmiláexplicou que com a língua se conce<strong>de</strong> axé, mas também se calunia,se <strong>de</strong>stróem reputações e se cometem as mais repudiáveis vilezas. Afala ou a palavra po<strong>de</strong> servir tanto para o bem quanto para o mal —um mesmo elemento po<strong>de</strong> ter um duplo valor simbólico.Nossa vi<strong>da</strong>, nosso cotidiano também se movimenta <strong>de</strong>ssa forma.Po<strong>de</strong>mos narrar, contar, fazer e pensar as coisas, a fim <strong>de</strong> conseguiruma convivência produtiva com as outras pessoas, ou não.Dando continui<strong>da</strong><strong>de</strong> ao caráter polissêmico dos textos e <strong>da</strong>spalavras, temos Júlio Emílio Brás, escritor negro <strong>de</strong> literaturainfanto-juvenil, que nos premia com um livro que traz gran<strong>de</strong> contribuiçãopara nós brasileiros. Em Len<strong>da</strong>s negras, o autor, contandoum conto, aumentou pontos em seu repertório ao retratar o universoangolano, como no texto a seguir.Quem per<strong>de</strong> o corpo é a línguaConta-se em Angola que há muito tempo um caçador,voltando para sua al<strong>de</strong>ia, encontrou uma caveiranum oco <strong>de</strong> pau. Assustado olhou <strong>de</strong>sconfia<strong>da</strong>mente<strong>de</strong> um lado para o outro, temendo algumaarmadilha ou uma <strong>da</strong>s muitas artimanhas dos espíritosque faziam <strong>da</strong> floresta o seu lar. Mesmo ain<strong>da</strong>De olho na Cultura 127
muito espantado, tomou coragem e se aproximou paraobservar.Nesse momento, a Caveira chamou-o e pediu:— Chegue mais perto, caçador, que eu não mordo, não!— Mas quem diz que ele a enten<strong>de</strong>? Mais <strong>de</strong>sconfiadodo que propriamente assustado, o caçador ficou on<strong>de</strong>estava e somente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mais algum tempo juntouum restinho <strong>de</strong> coragem e perguntou:— Quem a pôs nesse lugar, caveira?— Foi a morte, caçador — apressou-se ela a respon<strong>de</strong>r.— E quem a matou?Enigmática, os olhos brilhando nas órbitas vazias, acaveira voltou a respon<strong>de</strong>r:— Quem per<strong>de</strong> o corpo é a língua!...O caçador voltou para casa e contou aos companheiroso que acontecera. Ninguém acreditou, mas conversavai, conversa vem a história <strong>da</strong> caveira quefalava no meio <strong>da</strong> floresta foi se espalhando, até quemuita gente <strong>de</strong>la falava. Dias mais tar<strong>de</strong> o caçadorpassou pelo mesmo pe<strong>da</strong>ço escuro e sombrio <strong>da</strong> florestae tornou a ver a caveira no mesmo lugar, ajeita<strong>da</strong>caprichosamente num oco <strong>de</strong> uma enorme eigualmente assustadora árvore.Tornou a fazer as mesmas perguntas e, como era <strong>de</strong>esperar, ouviu as mesmas respostas. Mais que <strong>de</strong>pressao caçador correu para a al<strong>de</strong>ia e, todo orgulhoso<strong>de</strong> si mesmo, pois afinal era o único que encontravae conversava com a misteriosa Caveira, teimouem contar a história aos companheiros. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong>é que tanto ele contou que muitos começarama ficar com raiva <strong>de</strong>le...Afinal <strong>de</strong> contas, que Caveira era aquela que só falavacom ele?E por quê? Seria mentira? Por fim, acabaram dizendo:— Vamos ver essa tal Caveira <strong>de</strong> que fala tanto, masouça bem: se ela não disser coisa alguma que se pareçacom tudo isso que você tem dito a nós, vamoslhe <strong>da</strong>r lá mesmo a <strong>maio</strong>r surra <strong>de</strong> pau que você jálevou pra <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser mentiroso, ouviu bem?128 De olho na Cultura
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