José Gomes Ferreira – A Poética do Canto e do Grito - Repositório ...
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electricidade de sexos contrários” (<strong>Ferreira</strong>, 1991b:11). E a voz misteriosa, pactuan<strong>do</strong><br />
com essa relação, continua a convocar o poeta, como testemunha o poema XXVIII da<br />
série Noruega “(Do fiorde vem esta voz enigmática)” (<strong>Ferreira</strong>, 1998:248). Num<br />
primeiro momento, essa voz alerta para a passagem <strong>do</strong> tempo, metaforiza<strong>do</strong> no musgo<br />
e no seu crescimento: “a altura <strong>do</strong> musgo/contínua a medir a idade <strong>do</strong>s deuses e <strong>do</strong>s<br />
homens”. Num segun<strong>do</strong> momento, a mesma voz comenta a forma como o eu poético<br />
vive o tempo, “Enquanto tu partes…”, e o seu estatuto de faze<strong>do</strong>r de Poesia, “mais<br />
poeta complica<strong>do</strong> de labirintos sem destino”. Ao identificar a Poesia com os labirintos,<br />
ressuscita os dilemas que percorrem a poesia de <strong>José</strong> <strong>Gomes</strong> <strong>Ferreira</strong> e mostra que a<br />
sua forma de fazer poesia se prende com a descoberta de um caminho que será a saída<br />
<strong>do</strong> labirinto. Em seguida, diz que o poeta tem a sensação de cantar com a “boca<br />
incompleta”, usan<strong>do</strong> este adjectivo para mostrar que a missão ainda não foi cumprida.<br />
A hipálage “boca incompleta” realça essa falência e prova que a actividade poética,<br />
ainda que protegida pelas musas, exige um constante e eterno labor (exigência<br />
agravada pelas determinações da censura). E aqueles que forem escolhi<strong>do</strong>s, por<br />
exemplo, ouvin<strong>do</strong> uma voz, devem realizar o seu trabalho poético quase como um<br />
sacerdócio. Assim, esta voz enigmática funciona como uma espécie de coro à maneira<br />
das tragédias (gregas), pois comenta a vida <strong>do</strong> poeta e tira ilações <strong>do</strong> seu trabalho<br />
poético. A voz associa à sua nebulosidade a sua omnisciência, pois adivinha que, em<br />
<strong>José</strong> <strong>Gomes</strong> <strong>Ferreira</strong>, a inspiração é a gémea homozigótica da construção: “ Tu<strong>do</strong><br />
começa, geralmente, por um pequeno jacto de fogo que logo registo com gatafunhos.<br />
Poucos desses jactos, aliás, saem com a forma definitiva.” (<strong>Ferreira</strong>, 1971:13).<br />
Na esteira dessa procura definitiva, com o poema II da série Cinzas (<strong>Ferreira</strong>,<br />
1991a:107), ressurge o conceito <strong>do</strong> poema construção: “que bom não saber como o<br />
poema acaba”. Esta construção é combinada com uma autonomia das palavras “ que se<br />
buscam no papel”. Estas palavras não são ocas, têm conteú<strong>do</strong> “com astros dentro” e, se<br />
Para a definição / construção <strong>do</strong> Poeta Militante 117