José Gomes Ferreira – A Poética do Canto e do Grito - Repositório ...
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Os gritos dilacerantes coabitam com a <strong>do</strong>çura <strong>do</strong> canto. Daí que o poeta seja Josué<br />
e seja Orfeu 130 , grite para abalar (e tomar) a cidade e cante para encantar os homens<br />
to<strong>do</strong>s, participan<strong>do</strong> naquela revolução que “ continuará, continuará pelos tempos<br />
fora.” (<strong>Ferreira</strong>, 1998:418). Por isso, o canto, como já se disse, não é de embalar ou<br />
a<strong>do</strong>rmecer consciências.<br />
O poeta dá corpo a esta tensão entran<strong>do</strong> em diálogo consigo, com a poesia ou com<br />
outras formas de ser poeta, num conjunto de poemas de ín<strong>do</strong>le injuntiva constantes<br />
<strong>do</strong> corpus deste trabalho. Faremos deles uma leitura de onde serão extraídas algumas<br />
<strong>do</strong>minâncias semânticas que corporizam a arte poética de <strong>José</strong> <strong>Gomes</strong> <strong>Ferreira</strong>.<br />
No primeiro desses poemas selecciona<strong>do</strong>s, poema IX da série Melodia (<strong>Ferreira</strong>,<br />
1990a:48), distinguem-se duas atitudes <strong>do</strong> eu poético: uma de cariz disfórico e outra de<br />
tom eufórico. Para a definição da primeira contribui a sugestão de desistência: uma<br />
129<br />
A Orfeu, a mãe dera-lhe o <strong>do</strong>m da música. Nada nem ninguém resistia à sua arte de cantar e tocar.<br />
Orfeu casou com Eurídice e, logo após o casamento, ela morreu. A <strong>do</strong>r de Orfeu foi tão pungente e<br />
desesperada que resolveu descer aos infernos na tentativa de a recuperar. Ousou mais <strong>do</strong> que<br />
qualquer outro ser humano, empreenden<strong>do</strong> uma viagem ao mun<strong>do</strong> subterrâneo. Dirigiu-se às<br />
divindades infernais e, enquanto falava, fazia ressoar as cordas da lira ao ritmo das palavras. As almas<br />
infernais comoveram-se, chamaram Eurídice, entregaram-na a Orfeu, mas impuseram uma condição:<br />
antes de atingir a luz, Orfeu não se voltaria para trás para ver a esposa. Contu<strong>do</strong>, com me<strong>do</strong> de ter<br />
si<strong>do</strong> engana<strong>do</strong>, Orfeu olhou para trás e perdeu Eurídice para sempre. Passou a vaguear, só, por<br />
lugares ermos, sem outro conforto além da sua lira, que continuava a tocar, a tocar sempre; os seus<br />
únicos companheiros, os roche<strong>do</strong>s, os rios e as árvores, escutavam-no deleita<strong>do</strong>s.<br />
130<br />
“Comme Orphée se risquant au-delà des frontières de la mort, le poète est l’homme qui transgresse<br />
les interdits et ose regarder l’invisible en face. La descente aux Enfers figure l’aventure mentale, la<br />
quête initiatique que poursuit le poète dans sa descente au fond du langage” (Joubert, 1988:5).<br />
Cf. ainda Blanchot (1955 :233-248).<br />
Para a definição / construção <strong>do</strong> Poeta Militante 141