José Gomes Ferreira – A Poética do Canto e do Grito - Repositório ...
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E se, neste poema, se afirma a recusa da poesia que afasta da realidade, no único<br />
poema da série <strong>Gomes</strong> Leal (<strong>Ferreira</strong>, 1991a:101), o poeta, compon<strong>do</strong> uma lápide que<br />
perpetuasse a memória de <strong>Gomes</strong> Leal no local onde fora apedreja<strong>do</strong> pelos garotos de<br />
Lisboa, regressa ao tema da superlativação da poesia e <strong>do</strong> poeta. O poeta aquele que<br />
quis “rasgar o Véu / que esconde nas rosas as caveiras”.<br />
Cabe, por conseguinte, aos poetas suplantar o próprio Sísifo e, “na imprecisão de<br />
cada grito”, dar alento ao fogo que ilumina <strong>–</strong> a esperança. Assim termina o poema: “<br />
(eh poetas! Vamos nós rasgá-la!)”, a cortina de escuridão que não deixa ver o futuro.<br />
Enquanto missionários da militância, como se auto-intitula o poeta no poema XXVI<br />
da série Cinzas (<strong>Ferreira</strong>, 1991a:119), os poetas são capazes de suplantar o próprio<br />
Sísifo, pois enquanto Sísifo foi condena<strong>do</strong> a esse trabalho, os poetas fazem-no<br />
voluntariamente. Para a consecução dessa tarefa, o poeta interpela o orgulho,<br />
dirigin<strong>do</strong>-lhe vários pedi<strong>do</strong>s: “ata-me aos pés o pedregulho” (…) vem (…) endireitar-me<br />
a espinha (…) ordena que se cale esta voz (…) ergue-me da lama (…) leva-me pela gola.<br />
To<strong>do</strong>s estes pedi<strong>do</strong>s são preparativos de outros <strong>do</strong>is grandes pedi<strong>do</strong>s: “abre na súplica<br />
deste meu olhar (…) um clarão de desafio” e “ dá (…) um destino de águas pretas à<br />
sombra <strong>do</strong>s meus passos.” Tu<strong>do</strong> isto para ele se assumir como “eu, o poeta Militante”,<br />
e explicar os seus actos, determina<strong>do</strong>s pelo ódio à <strong>do</strong>r que se mascara: “Desci <strong>do</strong> meu<br />
mirante (…) Vim para a rua”. Só assim pode o poeta cumprir a sua missão.<br />
Por sua vez, a função da poesia será falar em cifra “<strong>do</strong> Crime, <strong>do</strong> Remorso, e <strong>do</strong><br />
Nada”, ou seja, impor o seu grito no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> silêncio imposto 137 (poema I da série<br />
Encruzilhada (<strong>Ferreira</strong>, 1991a: 133). Por isso, o poeta pode ordenar à Poesia<br />
137 Cf. “Grita, despedaça / com lâminas na boca / esta nossa mordaça / de silêncio imune.” (<strong>Ferreira</strong>,<br />
1991a: 247).<br />
Para a definição / construção <strong>do</strong> Poeta Militante 149