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José Gomes Ferreira – A Poética do Canto e do Grito - Repositório ...

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Reaproveita o termo “canção”, destruin<strong>do</strong>-lhe a sua acepção <strong>do</strong>ce, ao adjectivá-lo com<br />

a palavra “ásperas”. Agora já não ouve a voz cósmica, mas é <strong>do</strong>no de uma voz, “aquela<br />

em que sangra o desespero <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”. Quer que na sua voz se ouça a voz <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />

não a <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> cósmico mas a <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s oprimi<strong>do</strong>s: “Eu, o poeta que traz nos<br />

olhos as lágrimas <strong>do</strong>s outros?” (<strong>Ferreira</strong>, 1990a:215). No poema XXVI da série<br />

Sonâmbulo (<strong>Ferreira</strong>, 1990a:286), o eu poético enuncia outras vontades, “saltar da<br />

imaginação para arrancar da noite / a lua e os cometas” e “suprimir as estrelas”, que se<br />

revelam, desde logo, impossíveis, como atesta o uso <strong>do</strong> imperfeito <strong>do</strong> conjuntivo que<br />

as introduz. O sujeito poético continua a enunciação das suas vontades, mas agora<br />

partilha a responsabilidade da sua consecução com a Poesia, que institui como<br />

entidade poderosa à qual dirige os seus pedi<strong>do</strong>s: “Ah! pudesse eu pedir à poesia…”.<br />

Essas vontades ocorrem associadas a um sentimento de impotência face ao desafio /<br />

utopia de “ouvir pulsar enfim o nosso coração / na Terra só nossa”. O eu poético tem<br />

consciência <strong>do</strong>s limites, o que é visível na repetição anafórica da forma de conjuntivo<br />

imperfeito “Ah! pudesse eu / (…) // Ah! pudesse eu pedir à poesia…” 115 . Mas só o<br />

facto de o exprimir insinua o poder da Poesia, ainda que alia<strong>do</strong> aos seus próprios<br />

limites.<br />

To<strong>do</strong> o poema é percorri<strong>do</strong> pelos limites <strong>do</strong> poder da Poesia, <strong>do</strong>s quais o sujeito<br />

poético está plenamente consciente <strong>–</strong> pode esperar muito da Poesia, o que é evidente<br />

115<br />

É esta a leitura de Carlos Felipe Moisés: “A fórmula suficientemente clara: «…pudesse eu/ suprir as<br />

estrelas/ com uma espada de versos!» — poderia constituir indício seguro da consciência <strong>do</strong>lorosa<br />

mas insofismável, de que submeter a variedade <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> aos seus ideais é quimera absurda, porque<br />

palavras e versos não podem ter realmente qualquer acesso à praxis efectiva” (1983:98).<br />

Para a definição / construção <strong>do</strong> Poeta Militante 123

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