José Gomes Ferreira – A Poética do Canto e do Grito - Repositório ...
José Gomes Ferreira – A Poética do Canto e do Grito - Repositório ...
José Gomes Ferreira – A Poética do Canto e do Grito - Repositório ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
O tom que <strong>José</strong> <strong>Gomes</strong> <strong>Ferreira</strong> imprime a essas epígrafes é exibi<strong>do</strong> no poema que<br />
marca o seu renascimento poético:<br />
E há bairros miseráveis sempre os mesmos,<br />
discursos de Mussolini,<br />
guerras, orgulhos em transe,<br />
automóveis de corrida...(1990:39) 62<br />
É um tom de denúncia, que será depois acompanha<strong>do</strong> <strong>do</strong>s acordes que vão compor<br />
a sua sinfonia poética 63 , com referências aos grandes acontecimentos <strong>do</strong> século,<br />
filtra<strong>do</strong>s por um eu vigilante 64 e atento. Nesse senti<strong>do</strong>,<br />
como ele, embora com menos flora e menos fauna, mas muito mais nuvens e mulheres<br />
dependuradas nos candeeiros” (1985:82).<br />
61<br />
Esta ideia é confirmada por Rosa Martelo, na sua afirmação de que “os segmentos parentéticos são<br />
frequentemente o elo que prende o poema a um acto de escrita situa<strong>do</strong> e uma condição essencial <strong>do</strong><br />
auto-retrato <strong>do</strong> artista enquanto homem <strong>do</strong> século XX” (2004:35).<br />
62<br />
Sublinhe-se a concordância de visão de Ramos Rosa: “O poeta moderno descobre e denuncia a<br />
alienação total de um mun<strong>do</strong> cruel e desumano. Não há lugar, não só para o poeta e para a poesia,<br />
«não há lugar» simplesmente: a possibilidade de uma respiração livre e fraterna, de uma harmonia<br />
viva, apenas se propõe no exercício da poesia, no grito que ela é” (1962:19).<br />
63<br />
Onde, como defende Casimiro de Brito: “o poema (o trabalho <strong>do</strong> poeta), com a sua carga natural de<br />
violência, de História, defenderia, pela sua próprio autonomia, a sua qualidade de objecto<br />
simultaneamente estético e ideológico. Cifra<strong>do</strong>, sempre: e, por isso mesmo, organizan<strong>do</strong>-se,<br />
evoluin<strong>do</strong>, estratifican<strong>do</strong>-se em sistema simbólico. Poroso e de pedra. Frágil como a água, que não o<br />
é. E impon<strong>do</strong>, aos senhores <strong>do</strong> tempo, a sua singularidade «infinita»” (1986:31).<br />
64<br />
Característica confirmada por Samuel Fraga: “(…) <strong>José</strong> <strong>Gomes</strong> <strong>Ferreira</strong> estabelece, ao longo da sua<br />
obra de mais de cinquenta anos de vigor, um compromisso lúci<strong>do</strong> e íntimo como mun<strong>do</strong>, que<br />
recusa a contemplação passiva <strong>do</strong>s acontecimentos para se solidarizar com eles” (1986:94).<br />
76 <strong>José</strong> <strong>Gomes</strong> <strong>Ferreira</strong>: a <strong>Poética</strong> <strong>do</strong> <strong>Canto</strong> e <strong>do</strong> <strong>Grito</strong>