José Gomes Ferreira – A Poética do Canto e do Grito - Repositório ...
José Gomes Ferreira – A Poética do Canto e do Grito - Repositório ...
José Gomes Ferreira – A Poética do Canto e do Grito - Repositório ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
a metáfora pictórica que dá o nome ao auto-retrato é fecunda: tal como o pintor<br />
necessita <strong>do</strong> espelho para recriar a sua figura, também aquele que se pinta na escrita se<br />
mira no espelho de Narciso (Rocha, 1992:40-41).<br />
Não deixa, pois, de ser significativa a epígrafe escolhida por <strong>José</strong> <strong>Gomes</strong> <strong>Ferreira</strong> (já<br />
referida) em que associa a pintura <strong>do</strong> seu retrato à escrita <strong>do</strong> seu Poeta Militante, já que<br />
“o auto-retrato (…) incide sobre uma personagem que se olha ao espelho 15 e que se<br />
apresenta como espectáculo” (ibidem:1992: 15).<br />
Mas, no espelho de narciso, o poeta não vê reflecti<strong>do</strong> um eu individual. Pelo<br />
contrário, é to<strong>do</strong> um século: A Viagem <strong>do</strong> Século XX em Mim. E, porque se trata de um<br />
“eu” (“em mim”) em contínuo jogo com um “ele” (o “século XX”) que se quer dar em<br />
leitura a um “tu”, o poeta “dramatiza” a imagem que quer construir 16 :<br />
Insulto-me ao espelho.<br />
Covarde!<br />
(…) Eh! covarde!<br />
Arranca essas lágrimas <strong>do</strong>s olhos<br />
Que trazes apenas para te enfeitarem de ternura (<strong>Ferreira</strong>, 1991a:48)<br />
15 Sobre o recurso ao espelho, diz Alexandre Pinheiro Torres: “O que parece suceder em <strong>José</strong> <strong>Gomes</strong><br />
<strong>Ferreira</strong> é que os montões de ‘espelhos’ na sua obra em verso ou em prosa <strong>–</strong> ‘espelhos’ que são o<br />
lugar comum <strong>do</strong> encontro <strong>do</strong> seu eu e <strong>do</strong> seu outro <strong>–</strong> representam afinal instrumentos de precisão<br />
que medem o crescimento psicológico <strong>do</strong> Poeta” (1975:104).<br />
16 Didier refere-se a essa construção, descreven<strong>do</strong> o artifício literário que lhe está subjacente: “il ne<br />
s’agit pas tant d’exprimer un moi qui serait comme occulté, mais bien de créer, grâce au langage,<br />
grâce à l’écrit, une unité, une totalité qui est à construire” (1976:112).<br />
26 <strong>José</strong> <strong>Gomes</strong> <strong>Ferreira</strong>: a <strong>Poética</strong> <strong>do</strong> <strong>Canto</strong> e <strong>do</strong> <strong>Grito</strong>