José Gomes Ferreira – A Poética do Canto e do Grito - Repositório ...
José Gomes Ferreira – A Poética do Canto e do Grito - Repositório ...
José Gomes Ferreira – A Poética do Canto e do Grito - Repositório ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
presente da escrita, o sujeito poético introduz, ainda, a temática da <strong>do</strong>r, que o vai<br />
preocupar poeticamente e constituir mais um núcleo estruturante da sua poesia. Foi<br />
ainda sob a protecção das Musas que enunciou a sua missão de “tornar o Sol menos<br />
imun<strong>do</strong>”, recorren<strong>do</strong>, como confirma a apóstrofe “Poeta”, ao grito poético. Este,<br />
pronuncia<strong>do</strong> pelo eu <strong>do</strong> poema, institui a responsabilidade de intervenção <strong>do</strong> poeta /<br />
da poesia, que será marcada pela violência, “arranca a Chama (…) incendeia o<br />
mun<strong>do</strong>,” e pela luz 29 , sinónimo de esclarecimento, de erudição. É de acentuar o duplo<br />
entendimento <strong>do</strong> vocábulo “chama”, 30 que reenvia para “incêndio”, conota<strong>do</strong> com<br />
destruição, embora pressupon<strong>do</strong> a possibilidade de um renascimento das cinzas, e para<br />
“luz”, conotada com iluminismo e anuncia<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> aban<strong>do</strong>no <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> das trevas e<br />
consequente entrada no mun<strong>do</strong> da claridade. Esta desmontagem <strong>do</strong> verso permite-nos<br />
afirmar que a acepção “incêndio” corresponderá a uma vontade <strong>do</strong> sujeito poético de<br />
intervir no real social. A Poesia é, neste contexto, encarada como uma intervenção,<br />
realçan<strong>do</strong> o seu poder construtivo e que a aproxima <strong>do</strong> neo-realismo 31 . A acepção<br />
29 Cf. Chevalier et alii (1982:422).<br />
30 Esse duplo entendimento varia em função da abertura <strong>do</strong>s signos poéticos: “O que gostaria de<br />
comprovar é que não temos que nos comprometer com um significa<strong>do</strong>, com qualquer um <strong>do</strong>s<br />
significa<strong>do</strong>s. Sentimos os poemas antes de a<strong>do</strong>ptarmos uma, outra, ou ambas as hipóteses” (Borges,<br />
2002:96).<br />
31 Diz Eduar<strong>do</strong> Lourenço a respeito da estética neo-realista: “A coerência ideológica, a fidelidade, a<br />
combatividade, o gosto pela liderança, a audácia, a capacidade de provocação ou resistência são por<br />
isso inerentes à personalidade saliente de uma geração, cuja tomada de consciência se articula em<br />
volta de um projecto ideológico quan<strong>do</strong> este não é mera aventura juvenil sem amanhã, mas visão e<br />
realidade actuante na mais concreta das histórias. (…) É a exemplaridade militante que constitui o<br />
essencial da armadura ética e que conta para a definição de uma tal personalidade” (1983:88).<br />
36 <strong>José</strong> <strong>Gomes</strong> <strong>Ferreira</strong>: a <strong>Poética</strong> <strong>do</strong> <strong>Canto</strong> e <strong>do</strong> <strong>Grito</strong>