Capítulo I - Repositório Institucional da UFSC
Capítulo I - Repositório Institucional da UFSC
Capítulo I - Repositório Institucional da UFSC
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
século XIX – foi a de professora, nos demais grupos sociais já era mais comum o<br />
trabalho feminino, como vendedoras e costureiras, mesmo sob o risco de<br />
difamação por trabalharem fora de casa 267 . Aliás, normalista seria a profissão de<br />
Guiomar se acaso a baronesa não houvesse perdido sua única filha. Pois, aos<br />
dezesseis anos, a jovem órfã, por desejo <strong>da</strong> madrinha, entrou para um colégio<br />
para que sua educação pudesse ser “apura<strong>da</strong>”.<br />
112<br />
Como protegi<strong>da</strong> de uma pessoa de posses, mesmo que o destino não lhe<br />
tivesse reservado tamanha fortuna de “substituir” a filha faleci<strong>da</strong> de sua madrinha,<br />
ain<strong>da</strong> assim Guiomar estaria em uma situação privilegia<strong>da</strong> em relação a tantas<br />
outras moças que tivessem igual nascimento, pois, como já dito, outras profissões<br />
estavam reserva<strong>da</strong>s à cama<strong>da</strong> <strong>da</strong> população menos favoreci<strong>da</strong>. Mas, para<br />
Guiomar, o fato de ter tido melhor sorte que sua mãe, de ter uma oportuni<strong>da</strong>de<br />
267 Para explicitar melhor esse momento <strong>da</strong> história do Brasil, cita-se um trecho extraído de<br />
LAJOLO & ZILBERMAN: “O enriquecimento decorrente <strong>da</strong> exportação do café favorece a<br />
emergência de segmentos urbanos, o fortalecimento <strong>da</strong> classe média e a modificação dos<br />
setores dirigentes, associados ain<strong>da</strong> à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra, mas agora também interessados<br />
no comércio exterior. Os novos grupos não se satisfazem inteiramente com a fisionomia<br />
política, econômica e cultural do país, julga<strong>da</strong> conservadora e ultrapassa<strong>da</strong>: querem modificála,<br />
tornando a nação moderna e civiliza<strong>da</strong>, a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong> às inovações tecnológicas, aos novos<br />
costumes e ao progresso, característicos do final do século europeu.<br />
Para consoli<strong>da</strong>r tal projeto, cumpria remover elementos arcaicos enraizados na socie<strong>da</strong>de e<br />
remanescentes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> colonial, sendo um deles a reclusão <strong>da</strong> população feminina, outro, seu<br />
atraso, em tudo homólogo ao analfabetismo <strong>da</strong> maior parte <strong>da</strong> população, crianças e adultos. A<br />
campanha favorável à educação <strong>da</strong> mulher acompanha-se de outra, visando à obrigatorie<strong>da</strong>de<br />
do ensino para as crianças, atitude a ser encampa<strong>da</strong> e imposta pelo Estado.<br />
O fato de que em ambos os casos se tratava de instruir aproxima as duas campanhas.<br />
Elas se aparentam também porque formar a mulher podia significar capacitar contingentes de<br />
professoras à disposição de um mercado de trabalho que precisava expandir-se. A mulher, que<br />
em princípio educava os filhos, poderia ser também a mestra de todos, estendendo para fora<br />
de casa a tarefa para a qual fora talha<strong>da</strong>. Do sentido vagamente metafórico de responsável<br />
pela formação do homem de amanhã o papel formador atribuído à mulher se foi tornando<br />
literal, até se colar à identi<strong>da</strong>de feminina uma vocação natural para as lides do magistério.<br />
Destinar a mulher ao ensino resolvia diferentes problemas: justificava pragmaticamente a<br />
necessi<strong>da</strong>de de educá-la; solucionava a falta de mão-de-obra para o magistério, profissão<br />
pouco procura<strong>da</strong> porque mal remunera<strong>da</strong>; desobrigava o Estado de melhorar os proventos dos<br />
professores, porque o salário <strong>da</strong> mulher não precisava (e nem deveria) ser superior ao do<br />
homem, e sim complementar dele. Essas considerações recobriam-se por outras, de caráter<br />
ideológico: idealizava-se a professora, chamando-a de mãe, sugerindo assim que, lecionando,<br />
ela continuava fiel à sua natureza maternal. Negava-se o elemento profissional <strong>da</strong> docência,<br />
porque a sala de aula convertia-se num segundo lar.<br />
É claro que nessas condições a tarefa de ensinar não comprometia a rígi<strong>da</strong> divisão do universo<br />
social entre masculino e feminino, uma vez que não se apresentava como trabalho, e sim como<br />
extensão <strong>da</strong>s funções domésticas. Tal contexto sustava (ou atenuava) qualquer eventual<br />
pendor emancipatório que essa ativi<strong>da</strong>de pudesse conter. Ou seja, o exercício do magistério<br />
não escan<strong>da</strong>lizava as bases machistas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de patriarcal brasileira, permanecendo<br />
intoca<strong>da</strong>, e também idealiza<strong>da</strong>, a associação mulher-esposa-mãe, mesmo quando essa<br />
estivesse fora de casa, ganhando um modestíssimo pão de ca<strong>da</strong> dia‖. (LAJOLO, Marisa;<br />
ZILBERMAN, Regina. A Formação <strong>da</strong> Leitura no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1998, p. 261 –<br />
262).