Capítulo I - Repositório Institucional da UFSC
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“cortejando respeitosamente” a “senhora que apesar de tudo” ain<strong>da</strong> lhe “aparecia<br />
naquela mulher”.<br />
Mais tarde, antes de dormir, Paulo relembra onde já havia visto Lúcia.<br />
Teria sido quando chegou à Corte uns dias antes e tanto na primeira vez que a<br />
viu quanto nesse dia <strong>da</strong> Festa <strong>da</strong> Glória, o rapaz teve a mesma impressão sobre<br />
Lúcia: “Que lin<strong>da</strong> menina! Exclamei para meu companheiro, que também<br />
admirava. Como deve ser pura a alma que mora naquele rosto mimoso! 168<br />
Por esse duplo engano, Paulo se decepciona e se desgosta.<br />
Talvez se Lúcia se trajasse vulgarmente, atuasse como mulher mun<strong>da</strong>na,<br />
Paulo não tivesse tais sentimentos e impressões. To<strong>da</strong>via, quando não estava<br />
com algum amante, longe de sua alcova, a moça agia com distinção, seja na<br />
elegância de se vestir, de se perfumar ou de se ornar: ―Vi Lúcia senta<strong>da</strong> na frente<br />
do seu camarote, vesti<strong>da</strong> com certa galantaria, mas sem a profusão de adornos e<br />
a exuberância de luxo que ostentam de ordinário as cortesãs” 169 . Para completar<br />
essa imagem, possuía simplici<strong>da</strong>de e graça natural ao se exprimir e<br />
aparentemente uma fisionomia doce e calma: “A expressão angélica de sua<br />
fisionomia naquele instante, a atitude modesta e quase tími<strong>da</strong>, e a singeleza <strong>da</strong>s<br />
vestes níveas e transparentes, <strong>da</strong>vam-lhe frescor e viço de infância, que devia<br />
influir pensamentos calmos, senão puros” 170 . É dessas palavras com cargas<br />
semânticas que remetem à inocência – angélica, níveas, transparentes, infância,<br />
puros – que Paulo vê a “essência” de Lúcia, isto é, vê Maria <strong>da</strong> Glória 171 .<br />
168<br />
ALENCAR, José de. Lucíola: um perfil de mulher. 7ª ed. São Paulo: Edições Melhoramentos,<br />
[s/d], p. 14.<br />
169<br />
Idem, p. 34<br />
170<br />
Idem, p. 35.<br />
171<br />
De Marco irá dizer que: “Somente o olhar de Paulo, desprovido dos trejeitos urbanos e dos<br />
vícios de interpretação <strong>da</strong> corte, poderia ver em Lúcia a menina e não a mercadoria. Somente<br />
aqueles olhos que vinham de longe. Vinham <strong>da</strong> província, <strong>da</strong>s relações personaliza<strong>da</strong>s – como<br />
quer Alencar – ou <strong>da</strong>s relações estratifica<strong>da</strong>s <strong>da</strong>quele Brasil rural em que moço solteiro<br />
descobria o prazer na senzala, no corpo negro ou mulato; pele alva era rara e sempre coberta<br />
pela pobreza. Branca bem vesti<strong>da</strong> como aquela jovem <strong>da</strong> Rua <strong>da</strong>s Mangueiras tinha de ser<br />
sinhá que espera o casamento tratado pelo pai e suspira pelo herói de folhetim.” À medi<strong>da</strong> que<br />
Paulo vai se integrando à vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> Corte suas “expectativas românticas” vão se desmanchando<br />
e o “desnu<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> cortesã” vai revelando: “as normas sociais <strong>da</strong> corte, as transgressões<br />
permiti<strong>da</strong>s e as passagens proibi<strong>da</strong>s. Paulo é dilacerado pelas contradições entre fantasia e<br />
reali<strong>da</strong>de, casti<strong>da</strong>de e prostituição, deveres e desejos. Ele passa pelo processo de<br />
urbanização: descobre a ação dominadora do dinheiro na ceia do Sá e nas vitrinas <strong>da</strong> Rua do<br />
Ouvidor e sente o sabor áspero <strong>da</strong> cristalização <strong>da</strong>s relações pessoais. Quando se rasgam aos<br />
seus olhos o corpo e as roupas de Lúcia, ele conhece não apenas o mercado do prazer e suas<br />
regras, mas também o limite claro entre este e o casamento. Ele se depara com um critério<br />
básico de integração ou marginalização social <strong>da</strong> mulher. Os retalhos do vestido escarlate de<br />
Lúcia contrapõem-se no Rio alegre e harmonioso visto do adro <strong>da</strong> Glória e compõem a imagem<br />
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