Saulo Esllen Martins TRABALHO | <strong>por</strong> Saulo Esllen Martins Lixo que traz cidadania Entre os catadores em associações, mulheres exercem liderança e superam desigualdades
O caminhão chega na <strong>por</strong>ta do depósito para mais um dia de entregas. São grandes quantidades de plástico, papel, metal e materiais de toda ordem, descartados <strong>por</strong> residências e empresas. Ela não espera a ajuda dos homens que estão ali <strong>por</strong> perto, coloca as mãos na massa e arrasta um enorme saco plástico, cheio de materiais que podem ser reaproveitados. No corredor, a mulher conversa com alguns colegas, enquanto investiga o conteúdo do embrulho. Rapidamente, visualiza um recipiente de sabonete líquido e um par de chinelos. “Essas coisas têm serventia, nem vão para a triagem. Esse vidrinho chique vai direto para o meu banheiro, e o calçado servirá para alguém aqui. Quer ver?” E não demora, aparece um dono para as havaianas. Esse é apenas um pequeno relato do cotidiano de Maria das Graças Marçal. Aos 63 anos, ela é a coordenadora da Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável de Belo Horizonte (Asmare). Conhecida como Dona Geralda, a catadora começou nesse ramo ainda criança, acompanhando a mãe. “Foi assim, com oito anos eu já trabalhava. Iniciei nessa profissão <strong>por</strong> causa da fome. Começamos a dar destino para aquilo que ninguém queria, tirando do lixo o que não era lixo, para vender e sustentar a família. Com 16 anos ganhei a minha primeira filha e nessa época eu já puxava o meu primeiro carrinho de papel. O catador, antigamente, era visto como marginal. As pessoas diziam que nós sujávamos a cidade. Não existia associação. Era cada um <strong>por</strong> si. Mulheres e homens sofriam muito com o preconceito e a discriminação. Não tínhamos acesso à cidadania. Você acabava de catar papel, entrava numa lanchonete e era tocado pra fora <strong>por</strong>que estava sujo”, relembra Dona Geralda. A catadora retirou do lixo tudo que possui. “Isso aqui é a minha vida. Tenho muito orgulho do que fiz e faço. Nunca me senti triste <strong>por</strong> causa do meu trabalho. Foi o meio que consegui para sustentar os meus doze filhos, dos quais nove ainda estão vivos. Hoje, tenho filho que trabalha em jornal, mecânico e motorista. Todos estão bem encaminhados”, analisa. “O lixo está na cabeça das pessoas. Pra mim nada é lixo. Tudo tem uma utilidade. Até os restos de comida podem virar adubo. São poucas as coisas que devem ser totalmente descartadas, como no caso do lixo de banheiro. O resto a gente aproveita”. Economia solidária Na Asmare, Geralda conheceu os conceitos de economia solidária, associativismo e sociabilidade. Ao todo são cento e oitenta famílias atendidas. 53% dos associados são mulheres. “Mulheres e homens são iguais, aqui na associação. Nos tornamos uma família. Somos a primeira associação de catadores e hoje viramos referência no Brasil e no mundo. Já viajei para dentro e fora do país, representando os catadores. Estive na ONU, no Banco Mundial e falei sobre as nossas dificuldades e conquistas. A Asmare é um exemplo de como as pessoas, juntas, podem fazer a diferença. Conquistamos dois galpões para a triagem, uma marcenaria e um bar, o Reciclo”. O trabalho funciona da seguinte maneira: alguns catadores saem com seus carrinhos para buscar o material nas ruas da cidade. Outra parte da matéria- -prima chega em caminhões de empresas, hospitais e órgãos públicos, em geral. Quem sai para catar geralmente são os homens, <strong>por</strong> causa do grande esforço físico. Todavia, muitas mulheres também exercem essa tarefa. Enquanto isso, nos galpões a triagem é feita com mais de 80% de participação feminina. Na opinião de Dona Geralda, as mulheres exercem um papel muito im<strong>por</strong>tante na Asmare e na sociedade. Ela aponta que a cidadania chegou para as mulheres. “Antes, a mulher servia apenas para ser a chefe do fogão. Estamos em todas as áreas. Superamos muitas barreiras e enfrentamos muito preconceito. A mulher é capaz e quando ela age com o coração se torna ainda mais forte. Tenho muito orgulho de ser mulher e catadora. Minha vida foi de superação. Quando temos vontade de vencer, a força vem”. Reginaldo Rodrigues Ribeiro é assistente Social da Asmare. O trabalho dele consiste em dar su<strong>por</strong>te e atender as demandas dos catadores. Com o intuito de perceber as necessidades do grupo, ele desenvolveu uma pesquisa interna e destacou muitas questões relacionadas ao INSS, segurança no trabalho, saúde, encaminhamento de jovens para o trabalho, envolvimento com drogas, retirada de documentos, entre outras. “Fizemos também um recadastramento e percebemos que mais da metade dos associados são mulheres. No trabalho de separação e triagem as mulheres são mais habilidosas. Os homens têm atuado na função de trazer o material da rua. As atividades são complementares e equilibram as relações. As mulheres têm conquistado cada vez mais espaço. Muitas d<strong>elas</strong> sustentam suas famílias. Algumas são mães e pais, como <strong>elas</strong> dizem. Eu conheço outras associações no interior do estado e sei que a Asmare serviu de referência. Na maioria d<strong>elas</strong>, as mulheres estão na direção. Entre os catadores, as mulheres fazem a diferença”, enaltece Reginaldo. Rompendo barreiras Algumas pessoas passaram a vida como catadores. Mas esse não é o caso de Elizângela Aparecida da Silva. Hoje, ela exerce a função de auxiliar administrativo na Asmare. Apesar de um começo difícil, a vida reservou algumas surpresas e o<strong>por</strong>tunidades para ela. <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - março <strong>2014</strong> 27