99Ainda com os corridos, os capoeiristas acionam memórias relativas aoexercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r no tempo da escravidão:No tempo do cativeiroQuando o senhor me batiaRezava pra nossa senhoraAi meu DeusComo a pancada doíaTrabalha negoNego trabalhaTrabalha negoPra não apanharE trabalhava no algodão, no açúcar e no sisalEu era chicoteadoNum velho tronco <strong>de</strong> pauQuando cheguei na Bahia a capoeira me libertouAté hoje ainda me lembroAntigas or<strong>de</strong>ns do meu senhorTrabalha negoNego trabalhaTrabalha nego. Pra não apanhar (MESTRE VIRGÍLIO, 2003).Os corridos também relatam as relações estratégicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r presentes nodiálogo dos corpos no momento do jogo, e alertam os jogadores quanto ànecessida<strong>de</strong> do equilíbrio <strong>de</strong> forças na roda:Oi é tu qui é mulequeMuleque é tuMuleque te pegoMuleque é tuTe jogo no chãoMuleque é tuCastiga esse negoMuleque é tuConforme a razãoMuleque é tu (REGO, 1968, p.118).Não bata na criançaQue a criança cresceQuem bate não se lembraQuem apanha não esquece (MESTRE BIGODINHO, 2003).Quebra, quebra gerebaOi você quebra hojeAmanhã quem te quebra (REGO, 1968, p.115).As cantigas acima nos dizem que, no diálogo dos corpos produzido na roda, opo<strong>de</strong>r não se fixa, as posições invertem-se continuamente: “você quebra hoje,amanhã quem te quebra”, então, “não bata na criança que a criança cresce”. Dito <strong>de</strong>outro modo, em <strong>de</strong>terminado momento do jogo po<strong>de</strong> haver condição mais favorávela um jogador, porém, a cada movimento, o outro po<strong>de</strong> reverter e alcançar maiorforça na roda. É necessário estar atento aos movimentos e energias para escapar,
100inverter lugares nas relações estratégicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Esse jogo não emerge apenasmediante os movimentos dos dois jogadores que estão no centro, mas em todaformação da roda. Mestre Reginaldo aponta:Há a <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong> que todo mundo toca e canta pra eu jogar, mas temuma hora eu canto pra um outro jogar. É a sucessão <strong>de</strong> atores principais nocenário da roda. Todo mundo tem o seu momento <strong>de</strong> ser ator principal e oque <strong>de</strong>fine se você tem um espaço maior ou menor enquanto ator é oencantamento que seu jogo tem <strong>de</strong> todo mundo, <strong>de</strong>ntro e fora da roda. Éum teatro vivo. Se o jogo passa a não fascinar ele morre, ele morre porqueele não anima a bateria, ele morre porque a platéia começa a se dispersar,enten<strong>de</strong>u? (MESTRE REGINALDO VÉIO) 49 .Ao discorrer sobre a sucessão dos atores principais no centro da roda, mestreReginaldo diz das relações estratégicas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, que se intensificam e alcançam osque compõem aquele universo. Todos po<strong>de</strong>m jogar e ocupar o lugar <strong>de</strong> quem<strong>de</strong>termina as ações dos outros, <strong>de</strong> quem conduz os movimentos, em um exercício<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que não se fixa, mas flui em inúmeros momentos <strong>de</strong> trocas sucessivas.Essas trocas não acontecem somente em relação aos capoeiristas que estãojogando, mas a toda a estrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r presente na roda. Durante o jogo, nabateria, aquele que toca o berimbau gunga tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar o ritmo.Normalmente, é o mestre quem está com o gunga nas mãos. De acordo com<strong>de</strong>poimento do mestre Reginaldo Véio, somente po<strong>de</strong>m cortar um jogo o gunga ou,eventualmente, outro mestre presente na roda, que encontrou motivo paraesclarecer, na prática, alguma coisa.Nas rodas realizadas aos domingos na se<strong>de</strong> da Associação <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong>Lenço <strong>de</strong> Seda, quando o mestre sai da bateria para jogar, ele passa o gunga paraoutro componente do grupo, que, naquele momento, assume a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>comandar o ritmo do jogo, exercer o po<strong>de</strong>r. O mestre entra no círculo, passa acompor a roda e aguarda sua vez <strong>de</strong> jogar. Observamos novamente um exercícioflexível, no qual a prática do po<strong>de</strong>r não se fixa, mas estabelece-se em relaçõesmóveis, reversíveis.No ato do jogo, relações estratégicas intensificam-se: no diálogo corporal,“gran<strong>de</strong> e pequeno sou eu”, estou, simultaneamente, <strong>de</strong>terminando a ação e tendoos movimentos <strong>de</strong>terminados pelo outro. Um exercício flexível, no qual nem sempreo que predomina é a força física, mas a malícia, a atenção, esperteza. Pepinha49 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.
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