29Enten<strong>de</strong>mos que investigar o advento da capoeria no Brasil implica em buscarrupturas diversas: da evidência <strong>de</strong> que a capoeira é uma prática <strong>de</strong> origem africana,da evidência dos contornos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos grupos e culturas, da evidência <strong>de</strong>que, diante <strong>de</strong> um estado <strong>de</strong> dominação-escravidão, toda prática <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> écerceada, impossibilitada, sendo a contra-força a única forma <strong>de</strong> resistência. Enfim,buscar as inumeráveis rupturas que se abrem e se reencontram em novasconexões, produzindo uma experiência singular.Compreen<strong>de</strong>r a capoeira como acontecimentalização é operar por meio <strong>de</strong>uma <strong>de</strong>smultiplicação causal, que, na visão <strong>de</strong> Foucault (2004), consiste em analisaros processos múltiplos que constituem o acontecimento. Dessa maneira, investigar aproveniência da capoeiragem no Brasil requer analisar a condição <strong>de</strong> vida dosnegros escravos, as tradições africanas, o encontro entre diferentes etnias africanase brasileiras, o contexto escravista, a conexão <strong>de</strong> diferentes linguagens. Taisprocessos <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong>scompostos, visto que cada um <strong>de</strong>les também se compõeem atravessamentos diversos.Nessa perspectiva, é necessário consi<strong>de</strong>rar a capoeira como um “poliedro <strong>de</strong>inteligibilida<strong>de</strong>” (FOUCAULT, 2004, p. 340), cujo número <strong>de</strong> faces é in<strong>de</strong>finido enunca po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado concluído. Trata-se <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> conexõesheterogêneas, no qual elementos diferentes são postos em relação, <strong>de</strong> diversasformas, sem ponto central ou intencionalida<strong>de</strong> específica, por meio da interação,fusão e conexão entre danças, músicas, religiosida<strong>de</strong>, ritualida<strong>de</strong>, corpos, <strong>de</strong>sejos,sonhos, elementos do índio, do negro, tradição e invenção, em movimento contínuo<strong>de</strong> transformação. A capoeiragem é simultaneamente dança-luta-jogo, exercício <strong>de</strong>alegria e liberda<strong>de</strong> do corpo na dança, <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> força, valentia e po<strong>de</strong>r nogrupo, jogo <strong>de</strong> dissimulação diante da dominação escravista, contra-força e luta nasestratégias <strong>de</strong> fuga do negro escravo. Mediante esse polimorfismo <strong>de</strong> elementos erelações, ela adquire manifestações diferentes, a cada tempo e espaço, como “umprojétil inteligente, que amadurece na medida em que caminha” (MESTREREGINALDO VÉIO) 8 .Com intuito <strong>de</strong> investigar, nesse movimento, as mudanças <strong>de</strong> direção e ospolimorfismos que emergem, serão pontuadas algumas diferenças <strong>de</strong>ssa prática no<strong>de</strong>correr <strong>de</strong> sua historia.8 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.
303.2. No país escravocrata, dança e luta por liberda<strong>de</strong>A capoeiragem surgiu no Brasil em um período no qual predominava umestado <strong>de</strong> dominação, ou melhor, <strong>de</strong> dominação-escravidão. De acordo comFoucault (2004), os estados <strong>de</strong> dominação acontecem em circunstâncias nas quaisas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r se encontram cristalizadas, com poucas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>reversão, com mecanismos disciplinares rígidos e coercitivos, ou seja, “(...) quandoum indivíduo ou um grupo social chega a bloquear um campo <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,a torná-las imóveis e fixas e a impedir qualquer reversibilida<strong>de</strong> do movimento (...)”(FOUCAULT, 2004, p.266).A partir das elaborações <strong>de</strong> Domingues e Fiusa (1996), <strong>de</strong>stacamos o estado<strong>de</strong> dominação estabelecido no contexto brasileiro, mediante a relaçãocolonizado/colonizador. O Brasil era uma colônia <strong>de</strong> exploração sob o mo<strong>de</strong>lomercantilista. Conforme Bosi (1998), esse ímpeto mercantil e predatório é o queconstituiu, em termos <strong>de</strong> acumulação <strong>de</strong> riquezas, a aceleração econômica damatriz colonizadora.A mão-<strong>de</strong>-obra escrava estabelece-se em conexão com esse mo<strong>de</strong>lo.Segundo Domingues e Fiusa (1996) a escravidão do índio era inviável, pois suacaptura e venda gerariam negócios internos. Além disso, o uso <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obraassalariada também era inconveniente, por gerar renda que não seria revertida paraa metrópole. Assim, a escravidão <strong>de</strong> negros africanos configurou-se como aestratégia mais conveniente, pois a compra <strong>de</strong> negros dos traficantes metropolitanosgerava mais uma fonte <strong>de</strong> renda para Portugal, que controlou o tráfico negreiro<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XV. Autores apontam que, até o final do século XVIII, o Brasil haviarecebido cerca <strong>de</strong> dois milhões <strong>de</strong> negros africanos.Nesse cenário, a diferença <strong>de</strong> cor torna-se “o sinal mais ostensivo da<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> que reina entre os homens; e, na estrutura colonial escravista, ela éum traço inerente à separação dos estratos e das funções sociais” (BOSI, 1998,p.106). Até o século XVII, a socieda<strong>de</strong> brasileira apresentava uma estrutura socialimóvel e estratificada. Havia basicamente dois grupos isolados: <strong>de</strong> um lado, oscolonos latifundiários; <strong>de</strong> outro, a gran<strong>de</strong> massa <strong>de</strong> negros escravos (DOMINGUES;FIUSA, 1996).
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