89(...) a prática <strong>de</strong>sta ciência, meus camaradas, vos mesmos não sabes o quetens em si, se é seu, a natureza te <strong>de</strong>u, procure aperfeiçoá-lo, confiem emsi, (...) e verifique a verda<strong>de</strong>, é uma luta infinita, em resumo, a <strong>de</strong>finiçãoabstrata que caracteriza cada existência, e cada ser (DECANIO FILHO,1996, p.24)No jogo, na roda, aqueles que praticam a capoeiragem exercitam, no diálogocorporal, um processo <strong>de</strong> aperfeiçoamento contínuo em busca da “verda<strong>de</strong>”, quenão é única, mas produzida em cada existência, a partir das conexões e encontrosda vida. Emerge, assim, um conhecimento <strong>de</strong> si que é <strong>de</strong>nominado peloscapoeiristas <strong>de</strong> “malícia”. Uma criação engendrada na luta infinita, que não seexpressa no confronto com o outro, mas na persistência no caminho sonhado, noaperfeiçoamento pessoal produzido em “um agrupamento social regido por umespírito <strong>de</strong> cooperação, integrando o ser humano nos aspectos corporal, espiritual,mental e social” (DECANIO FILHO, 1996, p.23).Portanto, a experiência da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> transborda a roda e suscita ainvenção contínua <strong>de</strong> diferentes formas <strong>de</strong> ser e viver, individuais e coletivas.Perguntamos: como emerge a criação diante da tradição? A tradição pressupõerepetição, manutenção da forma, linhas duras, estratificadas. Como a diferençaemerge diante da ritualida<strong>de</strong>, do respeito à ancestralida<strong>de</strong> manifestada naautorida<strong>de</strong> do mestre? Quais fundamentos atravessam essa prática e como arepetição dos mesmos po<strong>de</strong> propiciar a emergência da singularida<strong>de</strong>?Para respon<strong>de</strong>rmos a essas questões, é fundamental consi<strong>de</strong>rar os planosnos quais a capoeiragem acontece. Há o plano atualizado, apreensível, que seexpressa nos fundamentos, rituais, golpes, ritmos; estratificações, com formas<strong>de</strong>lineadas, contornos. Há também o plano virtual: energias, potencialida<strong>de</strong>s,<strong>de</strong>sterritorializações, maquinações corporais, conexões intensas que unem corpos,movimentos, sons, sonhos, memórias, lutas, <strong>de</strong>sejos. Esses dois planosatravessam-se, fun<strong>de</strong>m-se e pulsam no momento da roda, abrindo um plano <strong>de</strong>consistência que possibilita a invenção.A gente tem pouco pra falar da capoeira. A gente tem mais é que viver acoisa, aí olhar o que tá acontecendo. (...) Você não escolhe o que acapoeira po<strong>de</strong> fazer por você. Você vai caminhando <strong>de</strong>ntro daquelepercurso e a capoeira vai escolher o que você vai ganhar com aquilo navida (PROFESSOR MAIA) 42 .42 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 01/03/2006.
90Consi<strong>de</strong>ramos que, com essa elaboração, o professor Maia retrata asconexões que emergem no ato <strong>de</strong> capoeirar e unem o indivíduo ao todo, ao outro,ao movimento, à bateria, à musicalida<strong>de</strong>, ao jogo. Nesse momento, abre-se umplano <strong>de</strong> virtualida<strong>de</strong> no qual não é possível escolher, organizar ou codificar, apenasfluir com movimentos da roda. A intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse afeto, <strong>de</strong>sses fluxos, difere-se <strong>de</strong>acordo com o percurso singular <strong>de</strong> cada capoeirista, em um processo iniciático.Conforme mestre Reginaldo Véio, a <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> é uma escola iniciática,na qual emerge uma forma <strong>de</strong> conhecimento <strong>de</strong> si e do mundo que não émensurável, nem passível <strong>de</strong> avaliação por meio dos padrões utilizados em outrossaberes dominantes na socieda<strong>de</strong>. Esse conhecimento é a conquista da malíciaque, na capoeiragem, não está vinculada à raiz da palavra, que pressupõe amalda<strong>de</strong>, o mal, mas a um saber conquistado.O exercício do po<strong>de</strong>r, na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, está diretamente associado àconquista da malícia. Alcança o lugar <strong>de</strong> mestre aquele que, conquistando essaforma <strong>de</strong> saber, torna-se capaz <strong>de</strong> acompanhar e orientar outro capoeirista nomesmo caminho e, simultaneamente, ser o portador e guardião da memória e datradição <strong>de</strong> seu povo. Cabe ao mestre a preservação e a transmissão dos saberes,rituais, golpes, cantigas, ritmos e história da capoeira (ABIB, 2004). A função domestre na capoeiragem constitui uma linha dura, uma relação hierárquica quepressupõe obediência e respeito dos discípulos, dos aprendizes. Essa autorida<strong>de</strong>,no entanto, estabelece-se mediante a produção <strong>de</strong> uma subjetivação autônoma esingular, com o <strong>de</strong>senvolvimento da malícia.Singularida<strong>de</strong> e tradição encontram-se na capoeiragem, o que engendravariações em sua prática: há diferentes formações <strong>de</strong> bateria, variadas formas <strong>de</strong>interpretar os fundamentos, <strong>de</strong> atribuir graus hierárquicos no processo <strong>de</strong>aprendizagem, no exercício do po<strong>de</strong>r, conforme cada mestre ou a linhagem <strong>de</strong>mestre. Mestre Reginaldo Véio conta que, em conversa com o contramestre Val<strong>de</strong>k,indagou: “quando há mestres falando coisas diferentes daquelas que meu mestreorientou, como saber o que é certo?” Val<strong>de</strong>k respon<strong>de</strong>u: “Certo é o que seu mestrete ensinou.” Essa história manifesta a dimensão do po<strong>de</strong>r do mestre na <strong>Capoeira</strong><strong>Angola</strong>.Há, portanto, na preservação da tradição, uma linha <strong>de</strong> reprodução, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,que atravessa a <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>. Pontos <strong>de</strong> cristalização e práticas <strong>de</strong> sujeição noexercício do po<strong>de</strong>r, nesse percurso iniciático. Contudo, permanece um po<strong>de</strong>r em sua
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