103cada pessoa que compõe a roda. Esse encontro polifônico produz um campo <strong>de</strong>forças intensas e abre um “limiar a-significante, uma espécie <strong>de</strong> relação <strong>de</strong>apreensão que é da or<strong>de</strong>m do afeto, da or<strong>de</strong>m da comunicação muda” (GUATTARI;ROLNIK, 2005). Então, alcançamos o que mestre Reginaldo sinalizou ao dizer que,para compreen<strong>de</strong>r a capoeira é, necessário experimentar corporalmente essaprática. Ou, <strong>de</strong> acordo com Abib (2004), que a capoeiragem guarda mistérios esegredos que são inapreensíveis aos não-iniciados.Com o intuito <strong>de</strong> tentar expressar como acontece esse afetamento que operanos limiares <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>, trazemos aqui um recorte <strong>de</strong> nossa experiência noprocesso <strong>de</strong> participação observante. Quando mestre Reginaldo <strong>de</strong>marcou que,para dizer da capoeira, era necessário experimentá-la corporalmente e, portanto,freqüentar os treinos, algo me <strong>de</strong>slocou do lugar <strong>de</strong> conforto e abriu fendas nocontorno subjetivo. Apesar <strong>de</strong> dialogar com a capoeiragem em diversos momentos<strong>de</strong> minha história pessoal e profissional, ousar praticá-la sempre foi, para mim, um<strong>de</strong>safio.Nos treinos, cada movimento trazia à tona um turbilhão <strong>de</strong> emoçõesheterogêneas: medo, sentimentos <strong>de</strong> incapacida<strong>de</strong> diante daquelas posiçõescorporais inusitadas, satisfação e potência criadora ao conseguir realizarmovimentos que pareciam impossíveis, alegria e prazer nos exercícios em dupla,quando os movimentos são enca<strong>de</strong>ados e ganham maior intensida<strong>de</strong>. Contudo,nada se compara à experiência da roda.A primeira vez em que fui convidada a entrar na roda foi ao final <strong>de</strong> um treino,quando o treinel abriu uma roda e todos foram convidados a jogar. Tentei meesquivar, disse que era iniciante, mas a mão estendida em minha direção era umconvite irrefutável. Quando percebi, estava ao pé do berimbau iniciando o jogo. Nãosabia o que fazer. Todos os movimentos que eu havia treinado e aprendidosumiram, como se tivessem dissolvido, evaporado. Fiquei alguns segundospensando, sem solução. Então, parei <strong>de</strong> pensar e simplesmente liberei o corpo e osmovimentos para respon<strong>de</strong>r às questões que o outro corpo me propunha. Nessemomento o jogo aconteceu e tornou-se impossível pensar ou codificar, apenasmovimentar, fluir e inventar saídas, em repostas e perguntas corporais que seconectavam continuamente.Foram intensos e singulares os momentos em que joguei na roda. Osmovimentos e conexões adquiriam formas diferentes a cada jogo. Ora emergia uma
104potência <strong>de</strong> luta que exigia rapi<strong>de</strong>z, movimentos mais agressivos e precisos,agilida<strong>de</strong> nas escapadas e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recuperação rápida para retomar o jogoapós uma rasteira; ora predominava a brinca<strong>de</strong>ira, a ludicida<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>mandavammaior teatralida<strong>de</strong> e manha. A cada jogo, pululavam em mim diferentessubjetivações, conforme as diferentes conexões. As potências <strong>de</strong> energia que seintensificavam cada vez que eu jogava na roda produziam uma sensação <strong>de</strong> intensaalegria e potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação, que continuavam ressonando após o jogo e seexpandiam em meu cotidiano, propiciando rompimento <strong>de</strong> contornos, com aemergência <strong>de</strong> momentos <strong>de</strong> maior irreverência e flexibilida<strong>de</strong>.Entrar na roda e jogar é realmente algo insólito: os movimentos inusitados, oato <strong>de</strong> estar literalmente <strong>de</strong> pernas para o ar, <strong>de</strong> quebrar as mo<strong>de</strong>lizações e a rigi<strong>de</strong>zcorporal em um processo <strong>de</strong> conexões múltiplas, nas quais o corpo já não é o “meucorpo”, porém o fluxo, o movimento, um campo <strong>de</strong> forças, uma espécie <strong>de</strong> “unida<strong>de</strong>heterogênea” <strong>de</strong> ritmos, sons, golpes, corpos, que potencializa <strong>de</strong>scobertas, abrenovas possibilida<strong>de</strong>s. Simultaneamente a essa abertura que rompe o contorno <strong>de</strong>subjetivida<strong>de</strong> individual, há um processo <strong>de</strong> centramento, do qual emerge apercepção <strong>de</strong> si, dos próprios movimentos, emoções, memórias, estratégias,<strong>de</strong>sejos, forças, que se produzem através do corpo.No jogo, o corpo já não é o corpo biológico, mas uma maquinação corporal –conexão <strong>de</strong> múltiplos afetos que abrem uma constelação <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s, que seatualizam e re-atualizam a cada segundo. Uma re<strong>de</strong> móvel e instável <strong>de</strong> potências eforças que produzem transformações incorporais e extravasam um corpo semórgãos, “(...) po<strong>de</strong>rosa vida não orgânica que escapa dos estratos, atravessa osagenciamentos, e traça uma linha abstrata” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.223).Essa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> forças, não <strong>de</strong> formas, intervém para a produção <strong>de</strong>intensida<strong>de</strong>s num grau zero, um corpo sem imagem, um estado fluido, através doqual qualquer produção ou organização é abolida. (PELBART, 2000) Um limiar <strong>de</strong>linhas <strong>de</strong> morte que, na capoeiragem, são intensas e constantes, atualizadas a cadamovimento, em golpes mortais. Em <strong>de</strong>terminados jogos, quando a potência <strong>de</strong> lutase intensifica e a velocida<strong>de</strong> dos movimentos aumenta, qualquer distração po<strong>de</strong>permitir a entrada <strong>de</strong> um golpe, que po<strong>de</strong> ser fatal.A experiência da roda vai permitir o exercício <strong>de</strong> uma prática mentaldiferenciada, são graus diferenciados <strong>de</strong> consciência que você vai acessarna medida em que você se solta e se entrega no embalo da roda. Sãodiálogos questionadores, perguntas e respostas, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um tempo <strong>de</strong>
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