31No escravismo, os senhores – colonos latifundiários – exerciam plenospo<strong>de</strong>res sobre a vida dos negros que aqui aportavam. O exercício do po<strong>de</strong>r dava-sepor meio <strong>de</strong> mecanismos muito severos, com técnicas coercitivas como castigos eviolências corporais. Um po<strong>de</strong>r exercido com plenos direitos <strong>de</strong> vida e morte, ou,segundo Foucault (1977), um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> morte, pois o senhor po<strong>de</strong>ria matar seuescravo, legitimamente, a título <strong>de</strong> castigo. Buarque <strong>de</strong> Holanda (1976) relata que,na história das senzalas, há muitos casos <strong>de</strong> mortes e <strong>de</strong>formações por excesso <strong>de</strong>espancamento.Esse po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> morte associava-se a outras formas <strong>de</strong> dominação, quepretendiam gerir a vida. Uma <strong>de</strong>las era a separação dos negros <strong>de</strong> uma mesmafamília ou grupo. Quando chegavam ao Brasil, os negros se tornavam objeto <strong>de</strong> umapolítica oficial <strong>de</strong> dominação. Para evitar laços <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, grupos e famíliaseram separadas e etnias rivais eram colocadas lado a lado (CRUZ, 1996).Mediante esse po<strong>de</strong>r exercido em relações <strong>de</strong> forças assimétricas, aspossibilida<strong>de</strong>s e margens <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> eram estreitas. A resistência era, quasesempre, pelo viés da contestação, negação, reação à força, com revoltas e rebeliõesescravas negras, fugas individuais ou coletivas, rituais religiosos <strong>de</strong> vingança,revoltas armadas.Porém, essa resistência negativa não era a única: emergem,simultaneamente, estratégias <strong>de</strong> resistência positivas. A chegada dos povosafricanos ao Brasil representava não apenas a chegada <strong>de</strong> força <strong>de</strong> trabalho, masum contingente <strong>de</strong> culturas, mitos, rituais, jeitos <strong>de</strong> viver e tradições oriundas dasterras d’África. Esses povos inventaram formas <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> suas tradições eengendraram códigos e práticas novas, <strong>de</strong>ntre elas, a capoeira, que era, inclusive,utilizada pelos negros “como um instrumento <strong>de</strong> luta (...) no qual o saber corporalinscrito em cada perna, braço, tronco, cabeça e pé podia ser transformado numaarma eficaz a serviço da sua libertação” (ABIB, 2004, p.89). Diante <strong>de</strong> um estado <strong>de</strong>dominação-escravidão, a luta não po<strong>de</strong>ria estar explicitamente manifestada:A coreografia que abria o cenário, com espaço para o corpo, tinha umimpulso <strong>de</strong> resistência e tomada <strong>de</strong> consciência das diferenças culturais, dacondição da escravidão, que exigia muito uma prática <strong>de</strong> combate. (...) Nomeu enten<strong>de</strong>r, a capoeira-dança camuflou a possibilida<strong>de</strong> do jogo e, ali<strong>de</strong>ntro, escon<strong>de</strong>u a possibilida<strong>de</strong> da luta (Mestre Reginaldo Véio) 9 .9 Informação verbal, obtida em entrevista realizada em 04/03/2006.
32Portanto, mesmo em circunstâncias nas quais predominam estados <strong>de</strong>dominação é possível haver resistência como processo <strong>de</strong> criativida<strong>de</strong>, que traz aemergência do novo, do diferente. Nesse(...) quadro <strong>de</strong> adversida<strong>de</strong>, os negros <strong>de</strong>senvolveram estratégias <strong>de</strong>sobrevivência e abriram espaços on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>ram reverter certas relações <strong>de</strong>dominação (...). A capoeira foi, sem dúvida, uma das expressões utilizadaspelos negros na construção <strong>de</strong> seus espaços <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> (...) (CRUZ, 1996p. 25).Na capoeiragem, a construção <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> produz-se naconexão dança-luta-jogo, com atravessamentos <strong>de</strong> música, ritmos, rivalida<strong>de</strong>s,<strong>de</strong>sejos, culturas, ritualida<strong>de</strong>s: corpos, movimento e ritmos abrindo campos <strong>de</strong>possibilida<strong>de</strong>s para inventar novas formas <strong>de</strong> viver e conviver.É comum imaginarmos a capoeira nascendo no contexto rural, nas senzalasdas fazendas, nos quilombos. Todavia, na opinião <strong>de</strong> Nestor <strong>Capoeira</strong> (1998), é nocontexto da cida<strong>de</strong> que seu crescimento e sua transformação foram maisexpressivos. Reis (1997) <strong>de</strong>clara que não existem pesquisas históricas acerca dacapoeira dos séculos XVI a XVIII, o que dificulta a reconstituição do processo <strong>de</strong><strong>de</strong>slocamento da capoeiragem do campo para a cida<strong>de</strong>.Rego (1968) cita a opinião <strong>de</strong> Nascentes 10 , segundo o qual o termo capoeirasurge a partir dos escravos que traziam capoeiras <strong>de</strong> galinhas para ven<strong>de</strong>r nomercado. Enquanto o espaço <strong>de</strong> venda não era aberto, eles divertiam-se jogandocapoeira. Cruz (1996) ressalta a importância da capoeiragem como elemento <strong>de</strong>socialização dos negros e espaço <strong>de</strong> interação <strong>de</strong> diferentes universos sócioculturais,no contexto urbano. Com as elaborações <strong>de</strong>sses autores, po<strong>de</strong>mosobservar que emergiam formas diferentes <strong>de</strong> manifestação da capoeira nosencontros que aconteciam nas ruas da cida<strong>de</strong>. Nesse contexto, essa experiênciaganhou maior visibilida<strong>de</strong>, força e intensida<strong>de</strong>.Segundo Buarque <strong>de</strong> Holanda (1976), a vida dos escravos nas cida<strong>de</strong>s eramais amena, com maiores possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> convívio. Os encontros que aconteciamno convívio urbano favoreciam o agrupamento dos negros e propiciavam tanto amanifestação e a conservação <strong>de</strong> tradições culturais comuns quanto a conexãoentre povos <strong>de</strong> origens diversas e condições culturais diferentes, engendrandonovas formas <strong>de</strong> expressão. De acordo com Abib (2004), nesses novos espaços <strong>de</strong>10 Antenor Nascentes é autor do Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, publicado em 1932.
- Page 6 and 7: AGRADECIMENTOSIêQuando eu aqui che
- Page 8 and 9: ABSTRACTThis paper presents a study
- Page 10 and 11: 6. CAPOEIRA ANGOLA: TRADIÇÃO E CR
- Page 13 and 14: 12julgamento de valor e determina q
- Page 15: 14coisa de que se sai transformado,
- Page 18 and 19: 17pelo mestre Reginaldo Véio 3 e s
- Page 20 and 21: 192. O MÉTODOÔ menino aprenda a l
- Page 22 and 23: 21pesquisadora que se lança na exp
- Page 24 and 25: 23significados são construídos e
- Page 26 and 27: 25De acordo com Meier e Kudlowiez (
- Page 28 and 29: 273. A CAPOEIRA NO BRASIL: ARTICULA
- Page 30 and 31: 29Entendemos que investigar o adven
- Page 34 and 35: 33socialização, emergiu uma cultu
- Page 36 and 37: 35eram identificados por cores, sin
- Page 38 and 39: 37polícia, ao jogo do bicho, aos o
- Page 40 and 41: 39manifestações dos artistas e in
- Page 42 and 43: 41“vadiação” é um termo chei
- Page 44 and 45: 43registrar seu Centro de Cultura F
- Page 46 and 47: 45musicalidade e o jogo, articulado
- Page 48 and 49: 47O estado de dominação estava co
- Page 50 and 51: 49a alta periculosidade, os baixos
- Page 52 and 53: 51conhecimento dos fundamentos dess
- Page 54 and 55: 53políticos e agentes de transform
- Page 56 and 57: 55De acordo com Rodrigues (2002), u
- Page 58 and 59: 57contemporânea, pois essa estrutu
- Page 60 and 61: 59envolve todo mundo. Envolve pra m
- Page 62 and 63: 61da Escola Estadual Capitão Egíd
- Page 64 and 65: 63grandes proporções, chegando a
- Page 66 and 67: 65Nas imagens, vemos crianças banh
- Page 68 and 69: 675. A CAPOEIRAGEM EM TEMPOS DE MOD
- Page 70 and 71: 69pessoal e o bem-estar da comunida
- Page 72 and 73: 71Entendemos, portanto, que, nas re
- Page 74 and 75: 73principalmente no que diz respeit
- Page 76 and 77: 75consumo se tornaram mais intensos
- Page 78 and 79: 77Os movimentos sociais conquistara
- Page 80 and 81: 79atabaque, que vai dar sustentaç
- Page 82 and 83:
81produz, simultaneamente, prática
- Page 84 and 85:
835.3. O corpo: das modelizações
- Page 86 and 87:
85capaz. Maquinações corporais,
- Page 88 and 89:
87O processo de desenvolvimento e a
- Page 90 and 91:
89(...) a prática desta ciência,
- Page 92 and 93:
91positividade, para potencializar
- Page 94 and 95:
93unicidade. Rupturas de sentido, c
- Page 96 and 97:
95Hoje, o berimbau é considerado o
- Page 98 and 99:
97Ao pai que nos criouAbençoe essa
- Page 100 and 101:
99Ainda com os corridos, os capoeir
- Page 102 and 103:
101relata um acontecimento que expr
- Page 104 and 105:
103cada pessoa que compõe a roda.
- Page 106 and 107:
105resposta mínima, onde pensament
- Page 108 and 109:
1076.3. A produção da malícia e
- Page 110 and 111:
109Pepinha fala dessa construção
- Page 112 and 113:
111a ser o protagonista de si mesmo
- Page 114 and 115:
113dos ritmos e da dança na diásp
- Page 116 and 117:
115se estabelecem no plano macro da
- Page 118 and 119:
117quer de modo mais coletivo)” (
- Page 120 and 121:
119compõe a capoeiragem. Em nosso
- Page 122 and 123:
121o respeito à linhagem de mestre
- Page 124 and 125:
123uma malta rival. Na contemporane
- Page 126 and 127:
125No cruzamento dos diferentes asp
- Page 128 and 129:
127Foucault (1986) o poder não é
- Page 130 and 131:
129por associarem a capoeira ao pec
- Page 132 and 133:
131diversos. Suas apresentações l
- Page 134 and 135:
133coloca-se continuamente à prova
- Page 136 and 137:
135microscópico, o qual, no entant
- Page 138 and 139:
137REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASACES
- Page 140 and 141:
139GALEANO, Eduardo. As palavras an
- Page 142:
141REIS, Letícia Vidor de Sousa. O