115se estabelecem no plano macro da vida. Dessa forma, falar da capoeira é falar davida, experimentar a capoeira é experimentar a vida. Conforme experiência relatadapor Flor, po<strong>de</strong>mos inferir que a conquista da malícia engendrada na roda se conectaà vida, produzindo uma forma <strong>de</strong> conversão a si, uma posse <strong>de</strong> si mesmo, umdistanciamento das preocupações com o exterior, através do centramento no que seé e no que se almeja.6.3.3. Quem quiser cuidar <strong>de</strong> si <strong>de</strong>ve procurar a ajuda <strong>de</strong> um outro.A ativida<strong>de</strong> consagrada a si mesmo não constitui um exercício <strong>de</strong> solidão. Deacordo com Foucault (2004), as práticas <strong>de</strong> si, tal como vivenciadas na Antigüida<strong>de</strong>,não implicavam em individualismo ou <strong>de</strong>sconexão com o coletivo, pois o postulado<strong>de</strong>ssa ética era: aquele capaz <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> si, <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong> sua vida uma obra <strong>de</strong>arte, seria capaz <strong>de</strong> se conduzir a<strong>de</strong>quadamente em sua relação com os outros.A capoeira é, eminentemente, uma prática coletiva. A roda é produção que sematerializa na conexão com o outro: diferentes pessoas, diferentes linguagenscorporais e incorporais. A conquista da malícia que se engendra no jogo acontecemediante a relação com o outro, por meio <strong>de</strong> movimentos inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,enca<strong>de</strong>ados no diálogo corporal. De acordo com Jorginho,Ela manifesta <strong>de</strong> acordo com a própria ação do seu adversário, porque amalícia tem que estar vindo com todos os movimentos, com todos osataques e no próprio jogo. A gente não precisa <strong>de</strong> muita força pra po<strong>de</strong>raplicar o contra-golpe. Você tem que usar a própria força do adversário parapo<strong>de</strong>r inutilizá-lo e a mínima força que você coloca no jogo, com a energiajá fluida no seu próprio consciente, a gente procura inutilizar o parceiro commaior facilida<strong>de</strong>. Depen<strong>de</strong> do momento, ganha aquele que muitas vezes fazas perguntas e o outro não tem a resposta pra dar. Tem que mostrar suaagilida<strong>de</strong> do modo mais sutil, do modo mais leve, na malandragem, namanha (CONTRAMESTRE JORGINHO ESCORPIÃO) 71Jorginho remete-nos à dimensão <strong>de</strong> luta que atravessa a capoeiragem. Nãouma luta na qual a força <strong>de</strong> um extermina o outro, mas que consiste em utilizar aforça do outro a favor do <strong>de</strong>senvolvimento da manha, da produção da malícia.Diante dos <strong>de</strong>safios produzidos instantaneamente nesse jogo <strong>de</strong> artimanhas, <strong>de</strong>forças que se opõem e se complementam, o capoeirista, em conexão com o outro,experimenta uma prática que o coloca continuamente à prova <strong>de</strong> si mesmo. Na roda,diante das inumeráveis possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conexão, é necessário criar, a cada71 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 16/06/2006.
116instante, novas respostas, novas formas <strong>de</strong> elaborar e transformar a si, <strong>de</strong> sesuperar continuamente e criar escapadas, produzir a malandragem <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>rcontinuamente ao outro e a si mesmo.Foucault (1985) afirma que, no exercício da arte da existência, faz-se umapelo ao outro, enten<strong>de</strong>ndo que este possui aptidão para dirigir e aconselhar. Dessaforma, o outro passa a exercer o papel <strong>de</strong> guia, professor, conselheiro. Tal como naspráticas <strong>de</strong> si, no universo da roda, o outro funciona como guia, professor, pois seusmovimentos, sua força, são perguntas corporais que direcionam, <strong>de</strong>safiam,potencializam respostas e constituem novas perguntas. Esses papéis sãointercambiáveis, <strong>de</strong>sempenhados concomitantemente pelos jogadores, pelasintervenções do berimbau gunga, pelas alternâncias <strong>de</strong> ritmo da bateria, pelascantigas entoadas com o coro. Assim, na <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> o outro não é adversário,mas parceiro <strong>de</strong> aprendizagem. Na opinião <strong>de</strong> Pepinha, a capoeira(...) é uma brinca<strong>de</strong>ira. Quando dois camaradas estão jogando capoeiraninguém quer quebrar o outro, porque são todos irmãozinhos, ali, naquelahora. Querem brincar um com outro pra ver quem é o mais esperto ali,sabe? Então a capoeira é essa brinca<strong>de</strong>ira. (...) você tem que vadiar comseu companheiro, com sua companheira, treinar junto, criar um jeito, sabe?Um inquietar o outro. “Vamos treinar aqui, me ajuda a <strong>de</strong>senvolver isso”. Euacho que é muito esse espírito junto, sabe? (PROFESSOR PEPINHA) 72 .Pepinha enfatiza a dimensão do jogo, da ludicida<strong>de</strong>, da vadiação nacapoeiragem, que se torna um encontro <strong>de</strong> irmãos, companheiros, parceiros emprocesso <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. Essa analogia entre as relações estabelecidas nogrupo <strong>de</strong> capoeira e as relações familiares apareceu em todas as entrevistas. Emnosso entendimento, a recorrência da expressão “nova família” no universo dacapoeiragem enfatiza a cumplicida<strong>de</strong> nas relações estabelecidas no grupo.Cumplicida<strong>de</strong> e confiança tornam-se fundamentais para que um possa ser para ooutro o inquietar constante que potencializa a transformação e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>si.No mundo greco-romano, as artes da existência também se efetivavam pormeio <strong>de</strong> diferentes formas <strong>de</strong> relações habituais, como as <strong>de</strong> parentesco e amiza<strong>de</strong>.Não obstante, frequentemente compunham estruturas mais ou menosinstitucionalizadas, com o reconhecimento <strong>de</strong> uma hierarquia, que “atribuía àquelesque estavam mais avançados, a tarefa <strong>de</strong> dirigir os outros (quer individualmente,72 Informação verbal obtida em entrevista realizada em 12/04/2006
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AGRADECIMENTOSIêQuando eu aqui che
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