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A parte frontal de meu cérebro sabia que devia lhe pedir ao Roane que me<br />
levasse a meu carro. Debaixo do assento do condutor havia um pacote com<br />
dinheiro e a documentação completa de uma nova identidade, com uma<br />
carteira de motorista e cartões de crédito. Sempre tinha planejado sair de carro<br />
da cidade ou ir ao aeroporto e subir ao primeiro avião que me desejasse muito.<br />
Era um bom plano. A polícia já estaria contatando com a embaixada, e antes<br />
do anoitecer minha tia saberia quem era, onde estava, e o que tinha estado<br />
fazendo durante três anos.<br />
A parte primitiva de meu cérebro queria saltar em cima de Roane enquanto<br />
conduzia a cento e vinte por hora pela rodovia. Sentia a pele torcida pelo<br />
desejo. Em realidade, não lhe podia tocar. Quão último precisava era lhe poluir<br />
com as Lágrimas. Como mínimo um de nós precisava permanecer cordato<br />
essa noite, e até que não tomasse banho, esse um não ia ser eu.<br />
Subi a escada até o apartamento do Roane, me abraçando a mim mesma,<br />
me cravando as unhas com tanta força para me deixar marcas nos braços. Isso<br />
era quão único podia fazer para me frear e não tocar ao Roane quando subia a<br />
escada justo diante de mim.<br />
Deixou a porta aberta detrás de si, e lhe segui até a habitação. Ele estava<br />
de pé no centro de uma ampla estadia. Inclusive na escuridão, a habitação<br />
brilhava de forma estranha e as paredes brancas resplandeciam à luz da lua.<br />
Roane se erguia como uma<br />
Figura negra no meio do fulgor prateado. Estava olhando ao mar, como<br />
fazia cada vez que entrávamos em seu apartamento, logo se voltou e olhou<br />
pelas janelas que formavam as paredes oeste e sul. O mar se elevava ao outro<br />
lado dos cristais e as ondas escuras e chapeadas rompiam na borda com um<br />
cós de espuma.<br />
Sempre seria segunda no coração do Roane, porque seu amor pertencia a<br />
seu primeira amante: o mar. Seguiria chorando sua perda quando eu já só fora<br />
pó em uma tumba. Esta certeza provocava solidão. A mesma solidão que tinha<br />
sentido na corte, observando a disputa das sidhe por insultos pronunciados um<br />
século antes de que eu nascesse, e sabendo que continuariam discutindo um<br />
século depois de minha morte. Era um pouco amargo, sim, mas sobre tudo<br />
certificava que era alheia à sociedade. Era uma sidhe, com o qual não podia<br />
ser humano, e era mortal, de maneira que não podia ser uma sidhe. Nem carne<br />
nem pescado.<br />
Embora me sentia isolada, abandonada, meu olhar se dirigiu à cama: um<br />
montão de lençóis brancos e almofadas pulverizadas. Roane a tinha desfeito,<br />
mas só a tinha feito pela metade. Nunca tinha entendido por que terei que<br />
engomar as rugas se os lençóis estavam podas. Tive uma súbita visão do<br />
Roane nu sobre esses lençóis brancos. A visão era tão nítida que me doía.<br />
Esticava-me o estômago e me fazia sentir algo mais abaixo, até que me custou<br />
respirar. Apoiei-me na porta fechada até que não pude me mover e,<br />
continuando, estirei-me. Não estava sob o efeito de produtos químicos nem de<br />
magia. Era uma sidhe, uma sidhe débil, menor, mas isso não trocava o fato de<br />
que tivesse aquilo que todos nós e os homens denominam mágico. Não era um<br />
camponês humano que logo que tinha entrado em contato com as fadas. Era<br />
uma princesa sidhe e pela deusa, que atuaria como tal.