portugues instrumental - Universidade Federal do Pará
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Não é o “tempo de espera” pela construção <strong>do</strong> convento que<br />
ocupa lugar de primazia na obra em Memorial <strong>do</strong> Convento. Saramago<br />
privilegia o impossível “tempo da visão”, o “presente <strong>do</strong> presente”, que<br />
só pode ser recupera<strong>do</strong>, em se tratan<strong>do</strong> de uma narrativa situada num<br />
momento recua<strong>do</strong> no passa<strong>do</strong>, pela memória (presente <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>) ou<br />
pela “imaginação” (presente <strong>do</strong> futuro). A expectativa <strong>do</strong> seu público-<br />
leitor não deve estar voltada, portanto, para o fim da obra (a literária<br />
ou a <strong>do</strong> convento), mas para o “enquanto”, para o transporte das<br />
pedras e para o “transporte” da linguagem. Decorre daí a sugestão que<br />
o título fornece da recuperação da memória (Memorial), remeten<strong>do</strong> à<br />
“recuperação <strong>do</strong> enquanto”. Dessa forma, o autor estaria reivindican<strong>do</strong><br />
mais uma autoridade de sobrevivente <strong>do</strong> que a autoridade de um morto.<br />
É como se dissesse (pois, mesmo que não tenha dito, “poderia ter dito”):<br />
- Eu vivi isso, essa oficial (h)istória <strong>portugues</strong>a e, ao experimentar vivê-<br />
la a fun<strong>do</strong>, vi que não era bem como contam, e tive uma experiência<br />
de transformação, de transfiguração da minha identidade enquanto<br />
português que não poderia ter deixa<strong>do</strong> de contaminar a (h)istória de<br />
Portugal como um to<strong>do</strong>, <strong>do</strong> qual faço parte.<br />
Saramago desmistifica a visão tradicionalista <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong> e <strong>do</strong><br />
profano ao fazer a construção de um convento, obra de caráter sagra<strong>do</strong>,<br />
ocupar o lugar <strong>do</strong> profano no romance. E cria, em torno da construção da<br />
passarola, elementos míticos que sacralizam essa construção condenada<br />
pelo Santo Ofício.<br />
Os cruzamentos entre os espaços sagra<strong>do</strong>s e profanos, nessa<br />
“narrativa sobre a história”, geram questionamentos sobre a posição <strong>do</strong><br />
homem no mun<strong>do</strong>, sobre o que seria sagra<strong>do</strong>, profano, homem, mulher,<br />
Deus e, inseridas nesses conceitos, as noções de “sóli<strong>do</strong> e evanescente”,<br />
como diz Saramago, traduzin<strong>do</strong> o permanente e o perecível, a eternidade<br />
e a efemeridade, a tradição histórica consolidada e a transformação<br />
histórica necessária.<br />
Questionamentos mais confronta<strong>do</strong>res, entretanto, são feitos na<br />
narrativa: o que seria “verdade” e “mentira”, no senti<strong>do</strong> histórico, dadas<br />
tantas referências cruzadas? Chamo de referências cruzadas simplesmente<br />
isso: as muitas referências de fatos históricos, lugares e personagens<br />
reais, no romance de Saramago. Uma obra ficcional nos leva a esse<br />
ponto de vertigem onde a ficção é apenas uma versão da realidade,<br />
certamente uma versão não descolada da concretude que a inspira.<br />
CEDERJ 113<br />
AULA 8<br />
MÓDULO 2