portugues instrumental - Universidade Federal do Pará
portugues instrumental - Universidade Federal do Pará
portugues instrumental - Universidade Federal do Pará
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Português Instrumental | O que é escrever bem?<br />
A N A C O L U T O<br />
Segun<strong>do</strong> o Novo<br />
dicionário Aurélio,<br />
anacoluto significa<br />
“figura de sintaxe<br />
que consiste<br />
no emprego de<br />
um relativo sem<br />
antecedente, ou na<br />
mudança abrupta<br />
de construção; frase<br />
quebrada; anacolutia.<br />
Exemplos:<br />
‘Quem o feio ama,<br />
bonito lhe parece.’<br />
‘O forte, o cobarde<br />
/ Seus feitos inveja’<br />
(Gonçalves Dias,<br />
Obras poéticas).<br />
[Isto é, ‘o cobarde<br />
inveja os feitos <strong>do</strong><br />
forte’]. ‘... tinha não<br />
sei que balanço no<br />
andar, como quem<br />
lhe custa levar o<br />
corpo’ (Macha<strong>do</strong><br />
de Assis, Páginas<br />
recolhidas).”<br />
12 CEDERJ<br />
Só se desgosta com o mun<strong>do</strong>, só tem ânsia de ser esposa de Jesus<br />
ou praticar a profunda caridade vicentina, as damas ricas e bran-<br />
cas, como a Nossa Senhora da Aparecida, de São Paulo. É mesmo<br />
católica essa religião?”<br />
Como você pode perceber pelos trechos em negrito, temos a<br />
impressão de que o escritor se enganou ao concordar o verbo com o<br />
sujeito. Ficamos com a impressão inicial de que o verbo desgostar preci-<br />
saria estar de acor<strong>do</strong> com a terceira pessoa <strong>do</strong> plural: “desgostam”. No<br />
entanto, podemos nos perguntar: por que, em diferentes edições onde<br />
essa crônica de Lima Barreto se encontra, nenhum revisor corrigiu esse<br />
“erro” de concordância? Uma das respostas possíveis se encontra numa<br />
nota feita à edição das crônicas de Lima Barreto preparada por Antônio<br />
Houaiss, Jackson de Figueire<strong>do</strong> e Manuel Cavalcanti Proença: tratava-se<br />
de uma concordância anacolútica. Quantos de nós perceberíamos isso?<br />
E quantos chegariam a essa mesma conclusão? E ainda: será que Lima<br />
Barreto tinha consciência dessa “concordância anacolútica” ao escre-<br />
ver? Ainda mais importante: percebemos que, na linguagem falada, se<br />
construímos uma frase como aquela, cheia de intercalações, dificilmente<br />
concordamos o verbo e o sujeito, por estarem muito afasta<strong>do</strong>s um <strong>do</strong><br />
outro.<br />
O que estamos dizen<strong>do</strong> é que a dificuldade de expressão não<br />
deve ser empecilho para a escrita, pois a língua, apesar de suas estrutu-<br />
ras e regras rígidas, comporta variações. E, freqüentemente, é possível<br />
compreender essas variações a partir de algum ponto já previamente<br />
sistematiza<strong>do</strong>. Por exemplo: não estudamos “concordância anacolútica”<br />
na escola, mas essa categoria é perfeitamente possível de ser criada à luz<br />
<strong>do</strong> conceito de ANACOLUTO, já defini<strong>do</strong> nas gramáticas. Saben<strong>do</strong> disso, a<br />
equipe de revisores mencionada se utilizou <strong>do</strong> conceito de anacoluto<br />
para descrever, justificar, explicar, enfim, legitimar a particularidade<br />
característica de Lima Barreto nessa crônica. O fundamental aqui é que<br />
o escritor, assim como qualquer falante, pôde se expressar seguin<strong>do</strong> o<br />
fluxo de suas idéias, e os gramáticos, nesse caso, é que tiveram de se<br />
adaptar ao texto existente. Contu<strong>do</strong>, que fique bem claro para você<br />
que essas negociações da língua não são quase nunca fáceis, e que a<br />
possibilidade de gramáticos se debruçarem sobre os textos de alguém<br />
menos legitima<strong>do</strong> pela tradição histórico-literária é muito remota.