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ANUNCIATA E SEU HUMOR - CES/JF

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106<br />

prato que certa vez adorei. Por mais jantares a que tenha ido e por<br />

melhores alguns lugares que tenha freqüentado, devo sempre<br />

esperar que alguém se sirva na minha frente para não pegar o talher<br />

errado e o copo idem. Além do quê, não como muito, nem tenho<br />

nenhuma particular predileção por comer. Gosto então da vida<br />

calma, sou um praticante da meditação e da ioga? Nunca dos que<br />

mais o são. Por outro lado a extrema agitação também não me é<br />

familiar.<br />

Que fiz de minha vida? Quando há um acidente de rua, vem-me o<br />

pavor de tomar partido, pois nunca tenho realmente a convicção do<br />

lado certo. Se fala o mais poderoso eu sou inclinado a ficar de seu<br />

lado por uma tendência a defender os que hoje são mais comumente<br />

acusados de todos os males, vítimas do tempo. Se fala o mais<br />

humilde sinto-me inclinado a defendê-lo por um ancestralismo que<br />

me faz seu irmão, por idéias arraigadas que fazem com que todo<br />

homem queira lutar instintivamente pelo mais fraco. Por quê? não<br />

sei. Sou bom de guardar nomes, caras, datas? Já disse que não.<br />

Sempre esqueço o nome dos conhecidos e troco o dos amigos mais<br />

íntimos num fenômeno parestésico que só a loucura mesma<br />

explicaria ou então a bobeira nata que Deus me deu. Em política<br />

meu conhecimento chega ao máximo de saber que o Sr. Plínio<br />

Salgado pertence ao PRP, o Brigadeiro à UDN e Jango ao PTB, e<br />

creio que há alguns outros partidos também. Mas mesmo essas<br />

convicções não são inabaláveis e, se alguém me pegar desprevenido<br />

e fizer dessas letras e nomes outras combinações, lá vou eu a<br />

aceitá-las, embrulhado e tonto, até que outro interlocutor crie para<br />

mim novas combinações e novas confusões.<br />

Mas peguem um puro e simples crime e eu nunca sei quem matou a<br />

empregada e em meu peito jamais se chegou a criar uma suspeita<br />

sólida a respeito do poeta de Minas. Isso aliás é o máximo a que vou<br />

— sei que houve um crime em Minas Gerais, alguém matou alguém.<br />

O morto não está na lista de minhas lembranças, não sei de quem se<br />

trata. Sei que o indiciado assassino é um poeta, vi sua cara barbada<br />

e meio calva em muitos jornais e revistas. Mas meus conhecidos<br />

sabem tudo. As mulheres de meus conhecidos então nem se fala.<br />

Que fiz eu de minha vida? — me pergunto de novo, honestamente,<br />

com a surpresa e a amargura com que o Senhor perguntava: “Caim,<br />

que fizeste de teu irmão?” Pois boêmio não sou, embora tenha gasto<br />

milhares de noites solto pelas ruas. Mas os boêmios me consideram<br />

um arrivista da boêmia assim como os homens cultos me consideram<br />

um marginal da cultura. E os esportistas a mesma coisa com relação<br />

aos parcos esportes que pratico. Todos com carradas de razão.<br />

E nem a maior parte do meu tempo foi gasta em conquistas<br />

amorosas, pois nesse terreno o Porfírio Rubirosa, se me<br />

conhecesse, me olharia com o mesmo desprezo com que me olham<br />

conhecidos galãs nacionais.<br />

Dessa mente confusa, dessa existência confusa, dessas maltraçadas-linhas<br />

de viver creio que só resta mesmo uma conclusão a<br />

que durante anos e anos me recusei por orgulho e vergonha — sou,<br />

por natureza e formação, um Humorista (FERNANDES, 1983, p.11–<br />

15).

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