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prato que certa vez adorei. Por mais jantares a que tenha ido e por<br />
melhores alguns lugares que tenha freqüentado, devo sempre<br />
esperar que alguém se sirva na minha frente para não pegar o talher<br />
errado e o copo idem. Além do quê, não como muito, nem tenho<br />
nenhuma particular predileção por comer. Gosto então da vida<br />
calma, sou um praticante da meditação e da ioga? Nunca dos que<br />
mais o são. Por outro lado a extrema agitação também não me é<br />
familiar.<br />
Que fiz de minha vida? Quando há um acidente de rua, vem-me o<br />
pavor de tomar partido, pois nunca tenho realmente a convicção do<br />
lado certo. Se fala o mais poderoso eu sou inclinado a ficar de seu<br />
lado por uma tendência a defender os que hoje são mais comumente<br />
acusados de todos os males, vítimas do tempo. Se fala o mais<br />
humilde sinto-me inclinado a defendê-lo por um ancestralismo que<br />
me faz seu irmão, por idéias arraigadas que fazem com que todo<br />
homem queira lutar instintivamente pelo mais fraco. Por quê? não<br />
sei. Sou bom de guardar nomes, caras, datas? Já disse que não.<br />
Sempre esqueço o nome dos conhecidos e troco o dos amigos mais<br />
íntimos num fenômeno parestésico que só a loucura mesma<br />
explicaria ou então a bobeira nata que Deus me deu. Em política<br />
meu conhecimento chega ao máximo de saber que o Sr. Plínio<br />
Salgado pertence ao PRP, o Brigadeiro à UDN e Jango ao PTB, e<br />
creio que há alguns outros partidos também. Mas mesmo essas<br />
convicções não são inabaláveis e, se alguém me pegar desprevenido<br />
e fizer dessas letras e nomes outras combinações, lá vou eu a<br />
aceitá-las, embrulhado e tonto, até que outro interlocutor crie para<br />
mim novas combinações e novas confusões.<br />
Mas peguem um puro e simples crime e eu nunca sei quem matou a<br />
empregada e em meu peito jamais se chegou a criar uma suspeita<br />
sólida a respeito do poeta de Minas. Isso aliás é o máximo a que vou<br />
— sei que houve um crime em Minas Gerais, alguém matou alguém.<br />
O morto não está na lista de minhas lembranças, não sei de quem se<br />
trata. Sei que o indiciado assassino é um poeta, vi sua cara barbada<br />
e meio calva em muitos jornais e revistas. Mas meus conhecidos<br />
sabem tudo. As mulheres de meus conhecidos então nem se fala.<br />
Que fiz eu de minha vida? — me pergunto de novo, honestamente,<br />
com a surpresa e a amargura com que o Senhor perguntava: “Caim,<br />
que fizeste de teu irmão?” Pois boêmio não sou, embora tenha gasto<br />
milhares de noites solto pelas ruas. Mas os boêmios me consideram<br />
um arrivista da boêmia assim como os homens cultos me consideram<br />
um marginal da cultura. E os esportistas a mesma coisa com relação<br />
aos parcos esportes que pratico. Todos com carradas de razão.<br />
E nem a maior parte do meu tempo foi gasta em conquistas<br />
amorosas, pois nesse terreno o Porfírio Rubirosa, se me<br />
conhecesse, me olharia com o mesmo desprezo com que me olham<br />
conhecidos galãs nacionais.<br />
Dessa mente confusa, dessa existência confusa, dessas maltraçadas-linhas<br />
de viver creio que só resta mesmo uma conclusão a<br />
que durante anos e anos me recusei por orgulho e vergonha — sou,<br />
por natureza e formação, um Humorista (FERNANDES, 1983, p.11–<br />
15).