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As “definições definitivas”, como diria Millôr (Cf.1974b p.110), tornam-se<br />
precárias diante de certas aversões a postulados e afirmam, por conta própria, a<br />
criatividade e o Humor. Enquanto tentam enquadrá-la, a fábula guarda em seu cerne<br />
uma essência crítica; e uma moral que, como se viu, só se tornou implícita quando<br />
La Fontaine, sem ofender ostensivamente a tradição, indicou tal possibilidade.<br />
Construída para apresentar, no caráter aforismático explícito ou implícito de<br />
sua moral, uma instrução, um ensinamento, uma visão de mundo, ela apresenta,<br />
fundamentalmente, um erro, um equívoco, uma atitude reprovável, para, em<br />
seguida, afirmar um princípio de conduta, sob a forma de alerta, advertência,<br />
proscrição ou prescrição. Pois, “Em vez de estar a corrigir nossos hábitos, é preciso<br />
esforçar-se por torná-los bons, mesmo quando são eles ainda indiferentes ao bem<br />
ou ao mal. Ora, que método pode contribuir mais utilmente que estas fábulas? (LA<br />
FONTAINE, 1970, p.19-20)<br />
Assim, o expediente da fábula se constituiu, através dos séculos, como uma<br />
forma de sabedoria sobre as questões da vida, ou seja, como arte de dar voz aos<br />
vários elementos que o conhecimento do convívio entre os homens traz de seus<br />
percalços. Por ser disto que trata, das inquietações contumazes e quase cotidianas<br />
da vida humana, ela quase sempre recorre ao artifício de descrevê-las como<br />
situadas entre animais, vegetais (e mesmo objetos) ou em lugares muito distantes,<br />
daí extraindo um prazer que antes seria amargo reconhecimento de insensatezes<br />
que só podem ocorrer ao dito homo sapiens. É uma forma, mais ou menos, lúdica de<br />
saber-se falho, mas ao mesmo tempo buscar o caminho do acerto:<br />
Pelos raciocínios e pelas conseqüências que destas fábulas se podem tirar,<br />
formamos o juízo e os costumes [...], pois somos a súmula do que há de<br />
bom e de mau nas criaturas irracionais [...]. Assim essas fábulas são um<br />
quadro, onde cada um de nós se encontra descrito [...] (IBIDEM, p.20).<br />
Eis aí a função da moral da fábula, seu fecho: traçar o caminho para superar<br />
as insuficiências humanas onde ela mesma se nega a admiti-las. E disto se serviu o<br />
gênero, se assim se pode dizer, durante séculos.<br />
Mas o lúdico da fábula não se nutre apenas da espirituosidade de seu<br />
formato; pode avançar por um caminho mais radicalmente crítico: o Humor. Este,<br />
como se sabe desde as agudas observações de Freud, não está aí para<br />
brincadeiras de dizer-dizendo-que-não-disse ou para camuflar o risível da fragilidade<br />
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