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muito depois e em outro lugar, o Jornal do Brasil se recusou a publicar um trabalho<br />
de Millôr pelas mesmas razões:<br />
Há um desenho dele que não chegamos a publicar porque nos pareceu, no<br />
momento em que foi feito, cruel demais, mas que certamente merece ser<br />
reproduzido aqui porque era e é na verdade perfeito, exato, impiedosamente<br />
verdadeiro. Reproduz a célebre fotografia de Tancredo, depois da segunda<br />
operação, posando entre D. Risoleta e os médicos de sua via crucis.<br />
Apenas, no desenho, a figura de Tancredo desapareceu; só se vê o espaço<br />
em branco que ele devia ocupar (PEDREIRA, 1985a, p.01) 8<br />
Para nos aproximarmos melhor da faceta cruel do Humor, sem incorrer no<br />
equívoco de considerá-la amoral, e revelar este aspecto nas fábulas de Millôr, vale<br />
apresentar uma delas, acompanhada de sua “explicação oportuna”, como introdução<br />
ao jogo contrapontístico que se fará a seguir. Mas antes, só um pouco antes,<br />
convém lembrar "o fato de que em nenhum campo cultural é possível ser original,<br />
exceto numa base de tradição [...]. A integração entre a originalidade e a aceitação<br />
da tradição como base da inventividade parece-me apenas mais um exemplo, e um<br />
exemplo emocionante, da ação recíproca entre separação e união"<br />
(WINNICOTT,1975, p.138).<br />
Repetido isto, deixemos a cargo do próprio Millôr o passo seguinte:<br />
O ESTUDANTE GRANDE E O PROFESSOR PEQUENININHO<br />
Ia um dia um professor bem pequenininho com sua espingarda de matar<br />
passarinho, andando pela floresta. Viu um passarinho, apontou a arma e<br />
disparou. Como não era professor de balística, mas sim de línguas<br />
neolatinas, errou o tiro, que foi pegar justamente na parte traseira de um<br />
estudante dessas línguas, que dormia no meio do mato. O estudante,<br />
levemente machucado, mas altamente enraivecido, acordou disposto a<br />
matar quem o ferira em sua honra. Pegou o professor pelo pescoço e já ia<br />
eletrocutá-lo, quando o professor lhe disse: “Pelo amor de Deus, não mate<br />
um professorzinho de línguas neolatinas”. O estudante sentiu piedade no<br />
coração e largou o pescoço que apertava com tanta vontade assassina.<br />
Dias depois, na biblioteca do colégio, o estudante tentava distinguir entre o<br />
dativo e o apelativo do verbo “colare” quando teve uma crise de desespero.<br />
Então pôs-se a gritar em altos brados que era um pobre diabo, que era um<br />
infeliz, que nascera para as violências do exercício físico e nunca para as<br />
sutilezas latínicas e algébricas. Então apareceu na biblioteca o diretor da<br />
escola e perguntou quem fazia aquela alaúsa. Todos que estavam na<br />
biblioteca silenciaram, não querendo denunciar o estudante, que se calara<br />
atemorizado. Mas o professorzinho, que lia a um canto, levantou-se e<br />
apontou o aluno e este foi expulso do colégio.<br />
8 A reprodução encontra-se no anexo A desta dissertação. E, basta olhar e ver, não é apenas o mais nítido espaço<br />
em branco que choca, mas também outros brancos espaços em meia lua. Se há algum humor negro —<br />
designação essencialmente imprópria , e, portanto, com “h” — em Millôr, este é o que mais o representaria.<br />
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