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Se Freud destinara ao riso um livro inteiro (1905) e voltou ao tema cerca de<br />
vinte anos depois (1927), num artigo instigante especificamente destinado ao<br />
Humor, os psicanalistas deveriam atentar para tal fato e, conseqüentemente, sua<br />
importância. Mas isto não ocorreu e eles ignoraram solenemente a presença do<br />
Humor em seus comentários, hipóteses e práticas, favorecendo assim a suposta<br />
solenidade requerida pelo ofício.<br />
Diz-se, com a unanimidade que costuma caracterizar o falso saber, que<br />
Lacan teria sido o único a atentar para os ditames do Humor no âmbito da<br />
psicanálise, depois do gesto inaugural de Freud. Aliás, quanto a esta e outras<br />
afirmações, Freud é que se cuide, porque senão com pouco tempo não passará de<br />
autor de meras sugestões importantes só plenamente desenvolvidas, elaboradas e<br />
estruturadas por Lacan. Neste rumo, a dívida de Freud para com este se tornará<br />
impagável (no duplo sentido, é claro!).<br />
Para atrapalhar um pouco esta fácil e ridícula trajetória, basta lembrar (já que<br />
os solenes psicanalistas fazem certa questão de esquecê-lo) que Winnicott conferiu<br />
ao lúdico uma posição central em suas formulações. Por uma destas tortuosas vias<br />
em que um equívoco aponta para o verdadeiro cerne da questão, a obra mais<br />
conhecida de Winnicott atende pelo significativo título de O brincar e a realidade.<br />
Fruto de uma insistente (e, ao que tudo indica, defensiva) ignorância a<br />
respeito de uma produção delineada ao longo de décadas, em praticamente todos<br />
os cursos de graduação em Psicologia e mesmo na maioria dos de formação em<br />
Psicanálise, O brincar e a realidade é a obra que se encontra na bibliografia<br />
recomendada; a única. E qualquer um que se debruce sobre ela só encontra,<br />
praticamente, duas opções: considerá-la ininteligível ou banal. Não é difícil imaginar<br />
que o segundo destino seja preferível ao primeiro, o qual envolveria atordoamento,<br />
inquietação, curiosidade desafiadora e dedicação aos passos anteriores para refazer<br />
o percurso da indagação winnicottiana e, aí sim, apreciar devidamente as inúmeras<br />
perspicácias contidas num volume tão modesto de páginas, na verdade uma espécie<br />
de súmula onde a síntese sacrificou detalhes e delicadezas que o rigor exige. Aliás<br />
Winnicott não escreveu tal síntese.<br />
Já combalido pela doença cardíaca com que lutava há anos, Winnicott não<br />
chegou sequer a ler as provas de seu, depois, mais famoso livro, na verdade<br />
construído por Masud Khan, seu fiel amigo e discípulo. Morreu na madrugada do dia<br />
em que as tais provas lhe chegariam às mãos para que as aprovasse.<br />
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