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prévios) estabelece-se o contraponto entre as morais moralizantes e outras,<br />
Humorísticas e amargas, bem afastadas deste caráter, e voltadas para o<br />
enfrentamento com a crueza das impropriedades humanas e sua ultrapassagem.<br />
Ao retomar o enredo, Millôr está às voltas com...<br />
A RAPOSA E AS UVAS<br />
De repente a raposa, esfomeada e gulosa, fome de quatro dias e gula de<br />
todos os tempos, saiu do areal do deserto e caiu na sombra deliciosa do<br />
parreiral que descia por um precipício a perder de vista. Olhou e viu, além<br />
de tudo, à altura de um salto, cachos de uvas maravilhosos, uvas grandes,<br />
tentadoras. Armou o salto, retesou o corpo, saltou, o focinho passou a um<br />
palmo das uvas. Caiu, tentou de novo, não conseguiu. Descansou, encolheu<br />
mais o corpo, deu tudo o que tinha, não conseguiu nem roçar as uvas<br />
gordas e redondas. Desistiu, dizendo entre dentes, com raiva: “Ah, também,<br />
não tem importância. Estão muito verdes.” E foi descendo, com cuidado,<br />
quando viu à sua frente uma pedra enorme. Com esforço empurrou a pedra<br />
até o local em que estavam os cachos de uva, trepou na pedra,<br />
perigosamente, pois o terreno era irregular e havia o risco de despencar,<br />
esticou a pata e... conseguiu! Com avidez colocou na boca quase o cacho<br />
inteiro. E cuspiu. Realmente as uvas estavam muito verdes!<br />
MORAL: A FRUSTRAÇÃO É UMA FORMA DE JULGAMENTO TÃO BOA<br />
COMO QUALQUER OUTRA (FF, p.118).<br />
Se a paródia pode ser filha do cômico, em Millôr ela, geneticamente, é filiada<br />
ao humor e serve antes à indignação firme e crítica que ao riso largo e frouxo e<br />
permissivo e passivo. No presente caso, a moral da fábula afirma que os critérios de<br />
julgamento são tão falhos no contexto humano, que qualquer suposto discernimento<br />
serve para ocupar tal posição.<br />
O humor é forma de fazer rir, mas basta um pouco de tempo para que o<br />
amargo apareça. Ele não alivia, antes opina e procura alguma reação.<br />
A “Raposa e as uvas” de Millôr é paródica, mas não é tão engraçada assim; é<br />
sarcástica, contundente. Está mais para o esgar que para o riso; é paródia com<br />
gosto de punhal.<br />
Como costuma ocorrer em sua múltipla, diversa e contínua produção, em<br />
algum outro ponto, anterior ou posterior, encontra-se a mesma idéia expressa de<br />
forma ainda mais cáustica, sem perder o riso ou muito pelo contrário. Para constatar<br />
isto, basta, por enquanto, pôr em cena outra fábula, cuja moral se entrelaça com a<br />
da anterior.<br />
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