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A verdade que Millôr aponta, vem com riso feroz e ferino. É um riso delator.<br />
Esta fábula, publicada em 1963, ou seja, há quarenta e três anos atrás,<br />
demonstra sua amarga (e ridícula) atualidade, e, para aumentar tal efeito, basta uma<br />
diminuta charge, posta à margem direita da capa do Diário da nova república<br />
onde, num auto-retrato à frente da máquina de escrever (datilografia), ele se faz<br />
acompanhar do seguinte comentário: “cada país tem o profeta que merece” (Cf.<br />
FERNANDES, 1985a). Isto em 1985.<br />
Deixando de lado o que ainda não passou, outro tema caro a Millôr<br />
Fernandes volta à cena — algumas de suas expressões já emergiram aqui —,<br />
desenvolvido pelo exercício constante de seu Humor, mais e mais ferino. Não há<br />
melhor modo de mostrá-lo senão pelo recurso de devolver ao fabulista o teor do<br />
drama humano com o qual se envolve:<br />
O BRILHANTE E O OPACO<br />
O Vagalume, de vago lume esverdeado, fazia voltas e voltas em torno de si<br />
mesmo, no encanto indisfarçável de seu próprio brilho. E, enquanto revoava<br />
pela escuridão da mata, de galho em galho dos arbustos, pensava com<br />
seus botões (luminosos):<br />
— Sou todo uma esmeralda só, brilhante e viva. Deus, Todo-Poderoso,<br />
ao me fazer um inseto noturno e me dar essa luz, evidentemente quis que<br />
eu fosse superior a todos os outros insetos, guia e Orientador da mata.<br />
E voava e voava e brilhava e brilhava e pensava e pensava:<br />
— Haverá, em toda a mata, outro como eu? Pois dentro do verde que pisco<br />
ainda há outro mistério: ninguém sabe se apago-e-acendo ou se acendo-eapago.<br />
Voava mais e, descrevendo parábolas de luz por entre as flores, mais se<br />
envaidecia na comparação com os outros habitantes da floresta:<br />
— Pobres irmãos inferiores, eu vim para protegê-los das trevas. Vocês,<br />
grilos de asas cinzentas e sem brilho, formigas que trabalham e suam sem<br />
um instante de luz e de fulgor, mariposas que, por serem opacas, qualquer<br />
luz liquida, míseras lagartas imitadoras de acordeões sem som, aranhas<br />
destinadas a serem feias tecelãs de sedas que jamais verão prontas, cupins<br />
que perdem as asas e ficam tontos até morrer, oh, para vocês todos, aqui<br />
está minha luz verde. Imitem-me os que puderem, sigam meu brilho<br />
maravilhoso os que estiverem perdidos nos caminhos.<br />
E voou mais alto e se comparou às estrelas:<br />
— Sou uma de vocês, irmãs! Pisco no céu, como vocês! Sou a Vésper, a<br />
estrela da noite, sou Alba, a estrela da manhã. Faço parte da constelação<br />
da selva, vivo, vivo!<br />
Foi descendo de novo quando, súbito, sentiu uma lufada de ar que o<br />
envolvia, algo pegajoso que o segurava e logo estava fechado numa<br />
atmosfera nojenta e escorregadia. Sua luz iluminou um pouco a escuridão<br />
intensa e ele viu, em volta, centenas de insetos, apertados uns contra os<br />
outros, num cubículo úmido e sujo. Um dos insetos, uma lesma sonolenta,<br />
levantou a cabeça e gritou com voz rouca e irritada:<br />
— Idiota, idiota, se não fosse você, com essa mania de iluminação noturna,<br />
o sapo-boi jamais teria nos engulido no escuro. Vamos, idiota, apaga essa<br />
luz que eu quero dormir!<br />
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