Amigos Leitores - Intervenção urbana
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de miséria. Uma noção que encerra por si só uma nova dimensão das<br />
possibilidades históricas de emancipação. "A opulência da harmonia -<br />
escreve em sua Carta ao Grande Juiz - não será mais que um meio para<br />
desenvolver e satisfazer sem obstáculos uma enorme quantidade de paixões<br />
brilhantes, que os civilizados desconhecem" (4). A riqueza do novo mundo<br />
amoroso se define em função da quantidade de paixões, "tão inumeráveis,<br />
ardentes e variadas que o homem opulento passará sua vida em uma<br />
espécie de frenesi permanente, e essas jornadas que hoje duram vinte e<br />
quatro horas lhe parecerão de uma hora". A miséria que a civilização<br />
estende de um modo permanente não vem dada, em primeiro lugar, pelos<br />
limites intrínsecos a um modo de produção determinado, pela<br />
irracionalidade de um sistema econômico, mas porque este sistema sempre<br />
sufoca os gestos de um possível desenvolvimento das paixões sob as<br />
exigências da produção. Sua miséria consiste em conceber a riqueza em<br />
termos de valor de uso. Por isso a crítica da civilização de Fourier revela<br />
antes de tudo, de um modo, caso se deseje, profético, o arcaísmo inerente<br />
às sociedades modernas chamadas de consumo; continuam se medindo na<br />
carência ao mesmo tempo que generaliza a abundância.<br />
Não é que o desenvolvimento atual das forças produtivas encerre a<br />
possibilidade objetiva da "realização da utopia", mas que, na era de sua<br />
organização racionalizada, o crescimento da produção dissolve as<br />
possibilidades históricas do "sonho" em seu horizonte quantitativo. A<br />
sociedade industrial não tende ao cumprimento do projeto utópico de uma<br />
nova riqueza, mas à sua incorporação na planificação futurista da vida. Não<br />
é tanto o fim da utopia enquanto utopia o que se inscreve em seu processo,<br />
mas sua morte enquanto ruptura revolucionária da continuidade histórica.<br />
Se o que caracteriza o capitalismo moderno é a função "infraestrutural" do<br />
Estado, centrado na compreensão e regulação das disfunções do<br />
desenvolvimento da produção, e no impedimento dos conflitos que<br />
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ameacem a integridade do sistema, não existe então dimensão<br />
emancipadora alguma inerente ao desenvolvimento das forças produtivas e,<br />
por conseguinte, no trabalho (5). O materialismo histórico sempre pôs suas<br />
esperanças no progresso como um processo de cunho libertador,<br />
transgressor dos limites específicos do sistema capitalista. Daí essa ilusão de<br />
"nadar a favor da corrente", como dizia W. Benjamim; daí também "essa fé<br />
secularizada do protestantismo no trabalho" que caracterizou seu<br />
pensamento (Bernstein se desmanchava em reparações e advertências<br />
quando se publicou a primeira edição alemã de O direito à preguiça).<br />
Trabalho como essência do homem, trabalho como práxis. E, contudo, não<br />
há outra universalidade no destino histórico do trabalho que a do<br />
desenvolvimento ahistórico da mercadoria. A dialética do escravo é<br />
esmagada pela racionalidade técnica que rege a planificação de seu<br />
trabalho, e que seu próprio trabalho criou; mas, sobretudo, se converte no<br />
ardil da perpetuação de seus grilhões ali onde o escravo "trabalha para suas<br />
necessidades", ou seja, ali onde declara a subordinação de seu desejo ao<br />
processo de produção. Não há reapropriação possível do desenvolvimento<br />
autônomo da economia quando as "necessidades" das quais deve depender<br />
são precisamente necessidades, o subproduto que o trabalho desprende da<br />
energia desejante.<br />
O que caracteriza o "capitalismo organizado" é o constante deslocamento<br />
deste limite de seu desenvolvimento que outorgaria ao trabalho um<br />
potencial transgressor, assim como a tendência a expandir seu domínio,<br />
como repressão instintiva, sobre as esferas não diretamente vinculadas com<br />
a produção. No entanto, este duplo processo mostra precisamente a<br />
importância de uma crítica que não só revele esta repressão que lhes é<br />
subjacente - no mesmo sentido que Freud - , mas, além disso, o potencial<br />
subversivo de multiplicidade pulsional que fica sempre à margem de sua<br />
base material de produção. Pois é mais provavelmente essa riqueza<br />
pulsional e não as possibilidades de desenvolvimento da produção, aquela