Amigos Leitores - Intervenção urbana
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DEVIR MULHER<br />
Felix Guattari<br />
Os homossexualismos funcionam, no campo social global, um pouco como<br />
movimentos, capelas, com seu cerimonial particular, seus ritos de iniciação,<br />
seus mitos amorosos, como diz René Nelli(1). Apesar das intervenções dos<br />
agrupamentos de caráter mais ou menos corporativista, como Arcadie(2), o<br />
homossexualismo continua ligado aos valores e aos sistemas de interação da<br />
sexualidade dominante. Sua dependência da normalidade heterossexual se<br />
manifesta por uma política do segredo, uma clandestinidade alimentada<br />
pela repressão e também por um sentimento de vergonha ainda vivo nos<br />
meios “respeitáveis” (particularmente entre os homens de negócio, de<br />
letras e de espetáculos, etc.) sobre os quais a psicanálise reina hoje em dia.<br />
Ela rege uma normalidade mais sofisticada, não moral, mas científica. O<br />
homossexualismo não é mais caso de moral, mas de perversão. A psicanálise<br />
o transformou em doença, em atraso de desenvolvimento, em fixação na<br />
fase pré-genital, etc.<br />
Num outro nível, mais minoritário, mais vanguardista, encontramos um<br />
homossexualismo militante, tipo FHAR(3). O homossexualismo contesta o<br />
poder heterossexual em seu próprio terreno. Agora quem vai ter de prestar<br />
contas é o heterossexualismo. O problema está deslocado, o poder<br />
falocrático tende a ser questionado. Em princípio, um conexão torna-se<br />
então possível entre a ação das feministas e a dos homossexuais.<br />
No entanto, conviria destacar um terceiro nível, mais molecular, em que não<br />
se distinguiriam mais de uma mesma maneira as categorias, os<br />
agrupamentos, as “especialidades”, em que se renunciaria às oposições<br />
estanques entre os gêneros, em que se peocuraria, ao contrário, os pontos<br />
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de passagem entre os homossexuais, os travestis, os drogados, os<br />
sadomasoquistas, as prostitutas; entre as mulheres, os homens. As crianças,<br />
os adolescentes; entre os psicóticos, os artistas, os revolucionários.<br />
Digamos, entre todas as formas de minorias sexuais, desde que se saiba que<br />
neste domínio só se pode ser minoritário. Neste nível molecular, nos<br />
deparamos com paradoxos fascinantes. Por exemplo, pode-se dizer ao<br />
mesmo tempo: 1) que todas as formas de sexualidade, todas as formas de<br />
atividade sexual, se revelam fundamentalmente aquém das oposições<br />
personológicas homo/hétero; 2) que no entanto elas estão mais próximas<br />
do homossexualismo e daquilo que se poderia chamar de um devir<br />
feminino.<br />
Ao nível do corpo social, a libido encontra-se efetivamente tomada pelos<br />
dois sistemas de oposição de classe e de sexo: ela tem que ser machona,<br />
falocrática; ela tem que binarizar todos os valores - oposições forte/fraco,<br />
rico/pobre, útil/inútil, limpo/sujo, etc.<br />
Ao nível do corpo sexuado, a libido está empenhada , pelo contrário, num<br />
devir mulher. Para ser mais exato, o devir mulher serve de referência,<br />
eventualmente de tela aos outros tipos de devir (exemplo: um devir criança,<br />
como em Schumann, um devir animal, como em Kafka, um devir vegetal,<br />
como Novalis, um devir mineral, como em Beckett).<br />
Por não estar tão longe do binarismo do poder fálico, o devir mulher pode<br />
desempenhar este papel intermediário, este papel de mediador frente aos<br />
outros devires sexuados. Para compreender o homossexual, dizemos que é<br />
um pouco “como uma mulher”. E muitos dos próprios homossexuais entram<br />
nessa jogada um tanto normalizadora. O casal feminino-passivo/masculinoativo<br />
permanece assim uma referência tornada obrigatória pelo poder, para<br />
permitir-lhe situar, localizar, territorializar, controlar as intensidades do<br />
desejo. Fora dessa bipolaridade exclusiva, não há salvação: ou então é a