II Caderno - Instituto dos Registos e Notariado
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Nº 4/2005 – Maio/Junho/Julho 2005 15<br />
1- A primeira dificuldade com que nos<br />
deparamos no caso <strong>dos</strong> autos é interpretar o<br />
negócio jurídico que se pretende ver acolhido nas<br />
tábuas. Para atestar tal dificuldade invoca-se o<br />
próprio texto da petição de recurso, onde<br />
(conclusão 13ª) se pede o registo do “direito ao<br />
usufruto em causa sobre o direito à quota ou<br />
participação social que constitui o seu objecto”.<br />
Haverá, portanto, que tentar fixar o sentido e<br />
alcance do negócio jurídico <strong>dos</strong> autos, maxime<br />
quanto à caracterização do direito que se pretende<br />
ver inscrito no Registo.<br />
1.1- O art. 1439º do Cód. Civil define<br />
usufruto como o direito de gozar temporária e<br />
plenamente uma coisa ou direito alheio, sem<br />
alterar a sua forma ou substância. Assim, o direito<br />
de usufruto apresenta a particularidade de poder<br />
ter por objecto tanto coisas como direitos (que, em<br />
qualquer caso, são alheios – ius in re aliena) 2 . Por<br />
outras palavras, o “usufruto vale, inclusive, para<br />
todas as coisas lato sensu (envolvendo os<br />
direitos)» 3 .<br />
Relativamente ao usufruto de direitos,<br />
coloca-se a questão de saber qual o seu verdadeiro<br />
objecto. Para quem admita a categoria de direitos<br />
sobre direitos, o objecto do usufruto (direito<br />
sobreposto) será o direito sotoposto, que assim se<br />
comporta «verdadeiramente como se fosse uma<br />
coisa» 4 . Para quem rejeite tal categoria, o objecto<br />
do usufruto «não é o direito que o usufruto limita,<br />
mas sim o objecto desse direito – ou seja, a coisa»,<br />
e «também no usufruto de crédito o usufruto não<br />
tem por objecto a propriedade ou titularidade do<br />
crédito, mas sim o objecto sobre que esse direito<br />
de crédito recai – ou seja, a prestação» 5 , sendo<br />
certo que no usufruto de crédito seria contraditório<br />
com a essência do direito real (a sua incidência<br />
sobre coisas) atribuir-se-lhe natureza real (tratarse-á<br />
de um «usufruto irregular» 6 ).<br />
Para Orlando de Carvalho, que não<br />
assumia «nem a atitude de rejeição conceitualista<br />
<strong>dos</strong> que contestam a categoria» <strong>dos</strong> direitos sobre<br />
direitos «nem a atitude de afirmação positivistalegalista<br />
que parte do princípio de que tudo é<br />
possível ao legislador, inclusive criar<br />
arbitrariamente os seus “bens”», «o bem em causa<br />
nos direitos sobre direitos é a situação<br />
economicamente vantajosa que se liga à<br />
titularidade do direito sotoposto – situação que tem<br />
decerto que ver com as utilidades que se esperam<br />
do objecto sobre que mediata ou imediatamente ele<br />
incide (mediatamente nos direitos de crédito e<br />
imediatamente nos direitos reais sobre coisas<br />
stricto sensu)» 7 .<br />
1.2- Como ensina Coutinho de Abreu 8 ,<br />
«parece não haver dúvidas de que sobre as<br />
participações sociais podem incidir diversos<br />
direitos reais».<br />
Brito Correia 9 ensina que «o usufruto sobre<br />
participações sociais consiste no direito de gozar<br />
temporária e plenamente os direitos inerentes às<br />
participações sociais, sem alterar a sua forma ou<br />
substância».<br />
A legalidade do usufruto de quotas está<br />
claramente afirmada pelo Código das Sociedades<br />
Comerciais, e bem sabemos quão controvertida é a<br />
natureza jurídica da quota e o objecto do direito de<br />
usufruto. Para quem entenda que a quota é uma<br />
coisa ou um direito, não surgem dificuldades. Para<br />
quem assim não entenda 10 , haverá, fundamentalmente,<br />
dois caminhos: «ou manter a unidade do<br />
direito real limitado, tentando explicar como o<br />
usufruto ou outro direito real limitado pode recair<br />
sobre um objecto que não é uma coisa ou um<br />
direito, ou fraccionar o chamado “direito de<br />
usufruto (ou outro direito real limitado) da quota”<br />
em direitos de usufruto sobre componentes da<br />
2 - Cfr. Carvalho Fernandes, in Lições de Direitos Reais,<br />
1996, pág. 339.<br />
3 - Cfr. Orlando de Carvalho, in Direito das Coisas, 1977,<br />
pág. 198.<br />
4 - Cfr. Carvalho Fernandes, ob. Cit., pág. 342.<br />
5 - Cfr. Oliveira Ascensão, in Direito Civil – Reais, 5ª ed.,<br />
págs. 39/40 e 478/9.<br />
6 - Cfr. Carvalho Fernandes, ob. Cit., pág. 342.<br />
7 - Ob. cit., pág. 199/200.<br />
8 - In Curso de Direito Comercial, Vol <strong>II</strong>, Das Sociedades,<br />
2002, pág. 342.<br />
9 - In Direito Comercial, 2º Volume, Sociedades Comerciais,<br />
1989, pág. 360.<br />
10 - Sobre a natureza jurídica das participações sociais, cfr.<br />
Coutinho de Abreu, ob. cit., pág. 218.