Delírio do Verbo: O Jornalismo Gonzo e a realidade ... - Flanador
Delírio do Verbo: O Jornalismo Gonzo e a realidade ... - Flanador
Delírio do Verbo: O Jornalismo Gonzo e a realidade ... - Flanador
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
tinha o cartão e a credencial colorida. Lembro que havia toda uma pantone de credenciais,<br />
restringin<strong>do</strong> ou liberan<strong>do</strong> acessos e que a dele era verde. Um verde sinaleira, desses que fazem<br />
sinal para abrir caminho. Ele queria que eu fosse com ele assistir a uma sessão fechada de uns<br />
longas latinos, e eu me senti constrangi<strong>do</strong> em dizer não. O sujeito já estava comigo há mais de<br />
duas horas, havia me paga<strong>do</strong> almoço, cerveja. Lembro de ter menciona<strong>do</strong> algo sobre<br />
acompanhar a exibição <strong>do</strong>s filmes à noite no Palácio <strong>do</strong>s Festivais. Eu não tinha a mínima noção<br />
de como faria para entrar lá. (Foi a primeira vez que eu notei a sua credencial.)<br />
Ele foi quem tomou a iniciativa. Fomos até a organização, eu ainda sem entender nada, foi então<br />
que ele pediu um ingresso da cota que ele tinha como cortesia de convida<strong>do</strong> <strong>do</strong> evento. Assim,<br />
em questão de minutos, ele tinha modifica<strong>do</strong> toda a minha viagem. No entanto, mesmo me<br />
sentin<strong>do</strong> o ingrato por aban<strong>do</strong>nar o amigo, resolvi ficar até o fim da Mostra de S-8. Ainda lembro<br />
dele rin<strong>do</strong> e balançan<strong>do</strong> a cabeça de um la<strong>do</strong> para o outro na penumbra <strong>do</strong> cinema, enquanto eu<br />
tentava explicar que não se tratava de uma questão estética, mas de solidariedade com amigos<br />
meus - cujo filme eu ainda não sabia que não seria exibi<strong>do</strong> - que não estavam lá. Ele me pediu o<br />
cartão de novo e anotou o número e o quarto <strong>do</strong> hotel em que ele estava hospeda<strong>do</strong> e se<br />
despediu. Eu não consigo lembrar a cara que ele fez, mesmo por que eu não recor<strong>do</strong> um traço<br />
sequer de seu rosto. Eu ainda lembro <strong>do</strong> cartão, <strong>do</strong> carpaccio que ele pagou, da credencial<br />
verde, mas essas coisas todas surgem como adereços de uma sombra e eu não enten<strong>do</strong> como<br />
isso pôde se manter na minha cabeça senão pelas conseqüências que desencadeou.<br />
Ok, mas penso que me precipitei, e acabei num caminho sem saída. O jeito é voltar no labirinto<br />
<strong>do</strong>s acontecimentos e tomar outra direção: o saguão <strong>do</strong> centro de eventos <strong>do</strong> Hotel Serrano, o<br />
entroncamento mor da história. Foi ali que eu conheci o produtor paulista, ali aconteceria o<br />
coquetel, mas antes de tu<strong>do</strong> foi ali que encontrei o Furasté. Lembro que achei muita graça ao<br />
encontrá-lo no quiosque de informações <strong>do</strong> Governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Afinal, percorrer cerca de 116<br />
quilômetros, para então encontrar um conterrâneo, praticamente um vizinho e além de tu<strong>do</strong><br />
colega de faculdade. No entanto, agora que as recordações vão se encadean<strong>do</strong> e toman<strong>do</strong><br />
senti<strong>do</strong>, preciso fazer um breve parêntese (a partir de agora só irei me referir ao amigo como<br />
Acácio. Não para lhe preservar a identidade, que para isso já é tarde. Mas por que essa é a sua<br />
função na história).<br />
Sem que eu tivesse lhe conta<strong>do</strong> nada, Acácio percebeu a minha situação.<br />
Provavelmente foi a mochila que me denunciou. Ele quis ser solidário e, como já era meio-dia e<br />
não havia muitas pessoas no Serrano, abriu a guarda de sobre o café e os chocolates. Os<br />
chocolates estavam num pequeno balaio de vime e cada vez que eu metia a mão ali, metia cinco<br />
envelopes daqueles no bolso - é de se notar que para essas coisas eu sou ambidestro. Assim<br />
que constituí um pequeno estoque, me dediquei à degustação. Nessas horas que a gente<br />
percebe que o chocolate é uma droga, e o sujeito ao consegui-lo tem momentos de consumo<br />
compulsivo. Principalmente se for desses chocolates de envelope. Eles são fininhos, <strong>do</strong> formato<br />
de uma hóstia, passam quase desapercebi<strong>do</strong>s pela boca, e aí é que está o perigo.<br />
Há também uma explicação semiótica, um certo apelo erótico nestes chocolates que reside<br />
principalmente na forma como estes se assemelham a certos atributos das camisinhas (ou seria<br />
o inverso?). Ambos possuem uma embalagem de envelope quadrada que deve ser rasgada para<br />
ser aberta. Os <strong>do</strong>is também utilizam-se de sabores similares, quan<strong>do</strong> não idênticos, em seus<br />
produtos como morango, abacaxi, laranja, menta etc., para torná-lo mais atrativo. E, por último,<br />
ambos remetem a um peca<strong>do</strong> capital (a gula ou a luxúria) ao mesmo tempo que se eximem<br />
dele: o chocolate, apesar de remeter à gula, vem embala<strong>do</strong> numa porção tão ínfima que é<br />
considera<strong>do</strong> produto de degustação. O mesmo acontece com a camisinha, ela é efêmera,<br />
descartável, serve para uma transa só - e quem se satisfaz com uma foda só? - Por outro la<strong>do</strong>,<br />
uma transa apenas também não implica compromisso, assim como a amostra <strong>do</strong> <strong>do</strong>ce não<br />
implica na chocolatria.<br />
Mas eu só fui pensar nisso mais tarde, quan<strong>do</strong> achei em meio ao coquetel a última das hóstias<br />
de chocolate no meu bolso. É verdade, havia um coquetel. E a exibição <strong>do</strong>s S-8 havia encerra<strong>do</strong><br />
bem no seu início. Lembro a cena: uma turba de superoitistas jorran<strong>do</strong> da saída da sala de<br />
projeção, sedenta por estímulos de uma ordem diversa daquele plano visual. O vinho calhou-nos