Delírio do Verbo: O Jornalismo Gonzo e a realidade ... - Flanador
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mas não tenho me<strong>do</strong>. Sou um xamã, a floresta é minha amiga.<br />
Na porta <strong>do</strong> bar, me <strong>do</strong>u conta de que sou um magrão encharca<strong>do</strong> e com os pés cheios de areia.<br />
Lavo os tênis na água que cai <strong>do</strong> telha<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> piso dentro <strong>do</strong> lugar, um cachorro late. Um<br />
pastor preto. É mescalito. Não, não é. Mas os cachorros, uns 3, me olham de maneira esquisita,<br />
cheiram. O bar brilha com luz intensa. Peço uma cerveja. Custa R$ 3,00, eu <strong>do</strong>u duas notas de<br />
10, mas o sujeito <strong>do</strong> bar é legal e me devolve direitinho. Percebo que é muito fácil me<br />
roubarem. Fico meio desconfia<strong>do</strong> <strong>do</strong> sujeito ao la<strong>do</strong>. Puxa papo, diz que é de Porto Alegre e está<br />
em Ibiraquera. Suspeito que seja um foragi<strong>do</strong> da polícia. Do outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> balcão, há uns<br />
hippies. Mas, na verdade, são piratas. O chefe deles é ruivo e tem feições norueguesas. Fala<br />
algumas frases de efeito e me manda ficar à vontade. Estou satisfeito. Feliz. As pessoas <strong>do</strong> bar<br />
cuidam de mim.<br />
Demoro para tomar a cerveja, ou acho que demoro. O tempo se alarga muito sob efeito <strong>do</strong>s<br />
cogumelos. Não tenho idéia de que horas sejam, parece ser umas 3 e meia. De repente, a deusa<br />
indiana Kali aparece perguntan<strong>do</strong> se a cerveja é minha. Hesitante, respon<strong>do</strong> que sim. Kali é má.<br />
Ela quer abusar de mim. To<strong>do</strong>s querem. Quero sair corren<strong>do</strong>, mas começo a me achar imbecil e<br />
tomo o resto da cerveja. Até porque, o foragi<strong>do</strong> pode desconfiar. Quero esperar ele ir embora.<br />
Não vai, então vou logo embora, deixan<strong>do</strong> Kali por lá.<br />
Andan<strong>do</strong> na rua, to<strong>do</strong>s olham para meu esta<strong>do</strong> deplorável. Olham mesmo? Não tenho como<br />
saber, mas isto me incomoda muito. Quase esbarro em mesas e carros. As pessoas naquele<br />
lugar são malditos mauricinhos horríveis. Não conseguem perceber, como eu, a existência, o<br />
senti<strong>do</strong> da criação, enfim, tu<strong>do</strong>. Vivem inconscientemente. Penso em matá-los, mas resolvo me<br />
refugiar na praia, onde não posso fazer mal a ninguém e ninguém pode me alcançar. O mar é<br />
meu amigo. A floresta também. Eu sou um xamã. Mas desta vez, a praia e to<strong>do</strong> o universo<br />
parecem imensos demais. Sinto frio. Alguns arbustos parecem guerreiros indígenas.<br />
O fato de os arbustos parecerem guerreiros explicaria as tais conversas <strong>do</strong>s xamãs com espíritos<br />
e animais míticos? Não admira que índios e acadêmicos de harvard tenham endeusa<strong>do</strong> os<br />
cogumelos, a experiência psicodélica. A psilocibina dá a impressão de ARROMBAR os filtros que o<br />
cérebro usa para não submergir em uma profusão de estímulos e sensações. O sujeito pensa<br />
mais rápi<strong>do</strong>, e não por lógica, mas intuição. Não sente cansaço. Compreende coisas apenas<br />
olhan<strong>do</strong> para elas. Tem respostas. É mágico, é poderoso. O que mais poderiam pensar índios<br />
sem nenhum refinamento acadêmico, além de que haviam passa<strong>do</strong> para outro mun<strong>do</strong>, o mun<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s espíritos e guerreiros ancestrais? Um mun<strong>do</strong> terrível, mas imenso, mas ao mesmo tempo<br />
familiar, aconchegante?<br />
A experiência psicodélica suscita uma questão intelectual importante sobre epistemologia: até<br />
que ponto nossos senti<strong>do</strong>s são uma forma razoável de conhecer o mun<strong>do</strong>? Tu<strong>do</strong> o que eu vi sob<br />
efeito da psilocibina EXISTIA. Quem poderia negar? Eu FALEI com o mar, eu VI a criação e a<br />
evolução. Se uma substância qualquer pode confundir assim os senti<strong>do</strong>s, por que uma variação<br />
normal em nosso cérebro não poderia nos fazer ver coisas que não existem o tempo inteiro?<br />
Pode-se confiar realmente na <strong>realidade</strong> que vemos? O equilíbrio químico <strong>do</strong> cérebro é, afinal,<br />
delica<strong>do</strong>. Não seria tu<strong>do</strong> um grande embuste?<br />
Neste instante, percebo o quanto a civilização é imbecil, como ideologias e culturas inteiras<br />
podem ser baseadas em erros de interpretação da <strong>realidade</strong> ou de <strong>realidade</strong>s induzidas por<br />
drogas. Há alguma certeza? Há?<br />
E to<strong>do</strong> caso, o mar ruge ameaça<strong>do</strong>r, como o vento e a chuva, eu estou perdi<strong>do</strong> dentro deste<br />
meu novo mun<strong>do</strong> de símbolos e começo a temer ter surta<strong>do</strong> com uma <strong>do</strong>se excessiva. A idéia de<br />
ficar com os senti<strong>do</strong>s confusos o resto da vida me inspira um terror verdadeiro. Deci<strong>do</strong> ficar<br />
senta<strong>do</strong> e não fazer nenhum movimento, esperar até de manhã, para o efeito passar. Quero,<br />
mais <strong>do</strong> que tu<strong>do</strong> na vida, sair da viagem. Quero voltar ao meu corpo, ao mun<strong>do</strong> real. O me<strong>do</strong> é<br />
avassala<strong>do</strong>r. Além de qualquer explicação. Tenho me<strong>do</strong> que meu ego se dissolva em símbolos e<br />
eu nunca mais volte. Sinto culpa, prometo nunca mais usar drogas e expiar to<strong>do</strong>s os meus<br />
peca<strong>do</strong>s e contar tu<strong>do</strong> para a minha mãe, quan<strong>do</strong> voltar a mim.