Tese Mestrado - Tiago Macaia Martins.pdf - RUN
Tese Mestrado - Tiago Macaia Martins.pdf - RUN
Tese Mestrado - Tiago Macaia Martins.pdf - RUN
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
A coexistência do perdão divino e do imperativo de perdoar é entendida no plano geral da <br />
coerência divina, no seu sentido interno e externo. <br />
Ainda uma última observação a este propósito. Wolterstorff diz que o direito <br />
correlativo do dever de perdoar se encontra em Deus, por Ele nos ter perdoado primeiro. Mas <br />
esta “justificação” do dever padece de um problema de coerência com a argumentação de <br />
Wolterstorff, uma vez que utiliza o código de reciprocidade 219 (“Se Deus nos fez bem, então <br />
pode exigir que façamos bem”), que ele mesmo havia rejeitado alguns capítulos atrás. <br />
Mas partamos do princípio de que o homem é, de facto, devedor para com Deus, no <br />
que diz respeito ao dever de caridade, e de que Deus tem, então o direito de exigir ao homem <br />
essa caridade. Será que este imperativo implicará a anulação da relação existente entre os <br />
indivíduos, a saber, uma situação de dívida, em que quem deve é precisamente o recipiente da <br />
caridade? <br />
A ordem que está na origem do dever de caridade incide sobre o indivíduo. Mas não <br />
incide sobre este em abstracto, ou seja, em desconsideração de quaisquer que sejam as <br />
circunstâncias. <br />
O dever de perdoar incide sobre uma situação concreta na vida de um determinado <br />
indivíduo: a de ele ter sido “wronged” (por alguém). Não existe dever de perdoar sem aquela <br />
situação. Isto é, como vimos, algo que o próprio Wolterstorff reconhece: não posso perdoar se <br />
não houver, por um lado, alguém a perdoar e, por outro, algo que perdoar. A situação do <br />
perdão corresponde então a uma determinada relação entre indivíduos. <br />
Neste sentido, o dever de perdoar não incide em abstracto no indivíduo, nem na <br />
relação propriamente dita 220 , mas no indivíduo em relação. Assim, de como pode acontecer <br />
que a existência de um imperativo divino dirigido ao indivíduo em relação (humana) anule a <br />
mesma? <br />
Se, de facto, o imperativo incide sobre o indivíduo-‐em-‐relação, então a sua existência, <br />
ainda que crie uma relação credor-‐devedor entre Deus e o indivíduo em causa, não apenas <br />
pode como na verdade tem de coexistir com a própria relação afecta ao imperativo. <br />
O imperativo de Deus não exclui, portanto, a relação moral entre os indivíduos, que é <br />
219<br />
220<br />
No seu sentido positivo. <br />
As relações não podem responder a imperativos, os indivíduos sim. <br />
99