Tese Mestrado - Tiago Macaia Martins.pdf - RUN
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em vez de resolverem o conflito entre a misericórdia e a justiça, reenquadram o problema e <br />
preparam um conflito entre a bondade e a própria justiça. <br />
Mas, por outro lado, à medida que se avança no capítulo IX e a reflexão sobre a <br />
bondade se aprofunda, o “peso” ou o “protagonismo” da bondade divina aumenta, o seu <br />
conflito com a justiça intensifica-‐se. E vinca-‐se cada vez mais a contraposição entre a “fonte” <br />
da bondade e a da justiça e o recurso à primeira como princípio de compreensão daquele <br />
desvio relativamente à última que a misericórdia ou o perdão de Deus parecem representar. <br />
Nos actos de Deus, o peregrino parece diferenciar dois domínios, correspondentes <br />
respectivamente à recompensa dos bons, por um lado, e ao perdão dos maus, por outro: “Mas <br />
se se vê, talvez, por que razão retribuis aos bons com bens e aos maus com males, devemos <br />
certa e profundamente admirar por que razão tu, que é inteiramente justo e não precisas de <br />
nada, concedes bens aos teus réus e maus” 102 . Mantendo a ilustração a que o peregrino de <br />
Anselmo recorreu um pouco acima, diríamos que parece haver um âmbito em que a justiça e a <br />
bondade jorram lado a lado ou “coincidem”: é assim quando Deus retribui “aos bons com bens <br />
e aos maus com males”. Note-‐se que, neste caso, é a bondade que desagua no rio da justiça, <br />
de sorte que o verbo usado é retribuir (retribuere). Por outro lado, há também um âmbito <br />
onde que os rios estão separados – e é precisamente nessa situação que sobressai a bondade <br />
divina e o carácter escondido da fonte da bondade divina. Nesse âmbito, a acção divina não se <br />
traduz em retribuir, mas em conceder, ou dar (tribuere) 103 . <br />
Este aumento do protagonismo da bondade como fonte da misericórdia e atributo <br />
mediador do conflito entre a misericórdia e a justiça 104 introduz também uma outra inflexão a <br />
justiça, num sentido totalmente oposto ao que analisamos de momento: “Quem retribui os méritos dos <br />
bons e dos maus é, efectivamente, mais justo do que aquele que retribui apenas os méritos dos bons” <br />
(“Iustior enim est qui et bonis et malis, quam qui bonis tantum merita retribuit”). <br />
102<br />
Cf. Proslogion, Cap. IX, “Et cum forsitan videatur, cur bonis bona et malis mala retribuas, illud <br />
certe penitus est mirandum, cur tu totus iustus et nullo egens malis et reis tuis bona tribuas” <br />
103<br />
Nesta diferenciação de verbos volta a ser demarcada a importância da doação enquanto <br />
característica da bondade, que é no entanto mais claramente visível no âmbito em que parece não <br />
coincidir com a justiça. <br />
104<br />
Insistimos neste ponto, já anteriormente referido, mas que não é demais acentuar, pela <br />
importância de que se reveste para percebermos a inflexão produzida nestes passos do cap. IX. <br />
Enquanto no princípio da análise o que avultava eram as relações de tensão entre os diversos atributos <br />
da perfeição divina e a forma como a sua pluralidade gera conflito e desencontro, o que é explorado <br />
nesta parte do Proslogion é, pelo contrário, a possibilidade de a própria pluralidade dos atributos <br />
fornecer chaves para mediar esses conflitos entre os atributos. <br />
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