Tese Mestrado - Tiago Macaia Martins.pdf - RUN
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que importa estar atento. Até aqui, genericamente, na contraposição entre a justiça e a <br />
misericórdia, era a misericórdia – não a justiça – que estava mais em causa ou que parecia <br />
constituir o “elo mais fraco”. Por outras palavras, o atributo que necessitava de uma <br />
“explicação” – o que parecia posto em xeque, era a misericórdia. O fundamento da justiça <br />
parecia, como vimos, seguro. Ao constatar-‐se que a misericórdia provinha da bondade, o <br />
argumento desviou-‐se para preparar uma contraposição entre a justiça e a bondade. Ora, para <br />
este confronto, os dois atributos têm de ser postos numa posição de igualdade. Se a justiça, <br />
com o seu fundamento primeiramente definido, permanecesse no “pedestal da discussão, o <br />
problema da aparente incoerência divina ficaria por resolver. Mas o verdadeiro “pedestal” da <br />
discussão é, em última análise, a coerência entre os atributos divinos. É nesse sentido que se <br />
pergunta “como é que Deus tem simultaneamente dois atributos que se parecem <br />
contradizer?” – esse “como” implica, como vimos, uma pressão de coerência. <br />
Assim, para responder (com uma solução) à pergunta inicial, o fundamento da justiça <br />
tem igualmente de ser posto em causa. E é por isso que, num sentido inverso, o mérito – o <br />
correlato da justiça – começa, subtilmente, a entrar um terreno de incertezas: “Que na tua <br />
bondade retribuas com bens os bons e com males os maus, é o que parece postular a razão da <br />
justiça” 105 . O autor utiliza o termo videtur, como que antecipando o desmoronar desta tese. <br />
Esta sugestão é então apresentada enquanto uma solução provisória para uma questão <br />
carecida de aprofundamento 106 . A bondade, no âmbito da misericórdia, põe igualmente em <br />
causa o fundamento da justiça, ao questionar a impressão inicial e ao levantara questão de <br />
saber se o fundamento da justiça no mérito é, afinal de contas, um fundamento real ou <br />
aparente. Desta forma, os dois atributos colocam-‐se frente a frente, em pé de igualdade. De <br />
sorte que se apresenta uma imagem quase esquizofrénica de Deus: “Ora, quando concedes <br />
bens aos maus, sabemos que o sumamente Bom o quis fazer, mas admirável é porque é que o <br />
sumamente Justo o pôde quer”. <br />
Em suma, o conflito entre a misericórdia e a justiça toma a forma de uma <br />
“gigantomaquia” dos atributos: a “gigantomaquia” dos superlativos entre a justiça e a <br />
bondade. O rio aparentemente calmo da justiça transforma-‐se em algo de torrencial, que se <br />
precipita contra a corrente não menos caudalosa da bondade. É isto que encontramos na <br />
105<br />
Cf. Proslogion, Cap. IX, “Etenim licet bonis bona et malis mala ex bonitate retribuas, ratio tamen <br />
iustitiae hoc postulare videtur.”. <br />
106<br />
Uma ideia semelhante é exposta um pouco antes: “Mas se se vê talvez por que razão retribuis <br />
aos bons com bens” (“Et cum forsitan videatur, cur bonis bona et malis mala retribuas”). <br />
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