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O homem sem TV na noite de chuva<br />

Quando ele chegou ao quarto, derreado, à beira de um ataque de nervos, depois<br />

de um dia terrível em que o patrão e os colegas desconsideraram seus mais finos<br />

anseios, depois de um engarrafamento pavoroso na Nove de Julho sob chuva que<br />

crescia, ele chegou correndo para o único alívio que tinha ainda depois da separação da<br />

mulher amada, que era apertar um botão e ver o Cid Moreira falando da Croácia ou de<br />

algum excitante seqüestro, ou de um épico desmoronamento ou do equipamento<br />

estragado de um hospital ou uma bela fraude, ou uma infinita escrotidão burocrática, e<br />

ele ficar com a cabeça no travesseiro, numa doce anestesia que apagava as humilhações<br />

do dia.<br />

Aí o botão da TV não ligou. Só veio uma luz negra do fundo do tubo e mais<br />

nada. Ele foi tomado pelo terror da solidão completa e olhava em vão todos os canais<br />

onde outrora florescia aquela janela colorida, luminosa, amiga, que sempre o<br />

acompanhou nas noites dolorosas. Os canais emanavam uma luz esverdinhada, até que<br />

no SBT ele ouviu ao longe, como vindo de outro planeta, um ruído que ele identificou<br />

como talvez, sim, talvez, frases emitidas em ondas curtas por Gugu Liberato... Banhou-<br />

se durante alguns momentos naquela voz que o alimentava com frases sobre casas da<br />

Bahia, ouvira bem? falava Gugu da Bahia, e coqueiros se embalaram por segundos em<br />

sua mente, e ele pôde respirar um pouco, reuniu forças, e de súbito teve um lampejo e<br />

arrojou-se para o quarto da empregada em busca da 14 polegadas preto e-branco e<br />

derreou-se ao ver o quarto vazio de TV, que a Evangelina levara para divertir a mãe<br />

com dengue na enfermaria de Itaquaquecetuba; voltou ofegante e rodou mais o dial e<br />

conseguiu um outro lampejo tosco de imagem esgarçada, cor de fezes de bebê, sem<br />

som, onde um polvo comia um caranguejo que se torcia entre os tentáculos e o polvo e<br />

o fundo do mar foram para ele mais uma fonte de poesia fugaz e ele se imaginou em<br />

Bali, mas a turva imagem também se apagou. Em pânico, ele correu à janela, a chuva<br />

tinha piorado, agora a torrente passava arrastando dois carrinhos e um homem de terno<br />

gritava agaixado ao poste da avenida, as últimas forças do homem estavam se esvaindo<br />

e ele voltou à TV, e agora só lhe restava a tela fervente do poltergeist, preto-e-branco,<br />

como um mar de luz envenenada, e ele ainda tentou um pouco de imaginação e se<br />

pensou atravessando um espaço entre planetas, onde, após a barreira de grãos ferventes,

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