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asas que nos fitavam. Ele falava sem parar algo como uma música indistinta,<br />

enquanto ao fundo uma velhinha ria, como uma boneca mecânica de parque de<br />

diversões; no meio da sala crianças nuas choravam, outras riam e uma mulher nova,<br />

morena, falava alto, com marcas de ferimentos no braço, como estilhaços que tivessem<br />

caído. A mulher gritava para nós que invadimos a casa com a câmera na mão: "Olha,<br />

olha lá no teto! Olha no teto os restos do menino! Ele explodiu e os restos dele bateu em<br />

meus braços e foi avoando para o teto, me molhou tudo, não foi mãe?" E a mãe ria, ria<br />

como bruxa de teatro infantil e o avô-sem-braço tremia e nós não entendíamos nada e eu<br />

sentia que alguma coisa maior surgia na sala, e a câmera rodava: "E o menino tinha a<br />

cabeça grande desde que nasceu e foi crescendo, crescendo, e ele ficava sempre deitado,<br />

ali no caixotinho, e a cabeça dele foi crescendo do tamanho de uma melancia, e só os<br />

dois olhinhos olhava a gente, e tinha um povo que vinha ver, que achava que era<br />

enviado de Deus, e até que ontem foi aquele estrondo forte, juro, quando eu olhei tava<br />

tudo molhado e até no teto tinha coisa grudada!" A velha no fundo do barraco ria sem<br />

parar, as crianças pulavam de excitação: "Avoou! Avoou!" E a câmera foi pegar o rosto<br />

da velha que ria. De um alto-falante perto começou a sair uma valsa vienense (o que<br />

fazia o Danúbio azul ali na ma do Sol?), e o clima foi um misto de arrepio de horror<br />

com precisão trágica.<br />

Tudo compunha o quadro de perfeição: os gritos, os risos, os vôos da câmera<br />

para o teto da casa procurando pedaços, a valsa. A câmera foi para o velho que estava<br />

como que cantando uma melopéia, uma ladainha-de-arame, uma galáxia com som<br />

metálico, e ele apontava com o único braço para a câmera: "Retrato? Tira retrato de<br />

mim! Eu sou o bagaço do engenho!" Ele tremia, tremia. "Eu passei por dentro da<br />

engrenagem de engenho; meu braço ficou preso lá e depois eu peguei a tremer e tremer<br />

e já estou tremendo há 11 anos desde o dia que a mula do engenho deu um arranco e<br />

meu braço entrou na engrenagem e virou bagaço e a mula deu um arranco com força e<br />

caiu morta, ainda pendurada na vara da moenda, e a mula eles levaram morta embora e<br />

meu braço ficou lá no meio do melado e desde aí eu não tenho mais serventia e não sei<br />

por que eu não saio da vida. Em todo este sertão ninguém tem serventia. Tem que<br />

morrer tudo! Eu não morri não sei por quê. Eu queria ir atrás do meu braço!"<br />

E a música tocava no alto-falante agudo (por que uma valsa?) e a máquina foi<br />

fechando, o palco foi se formando, o quadro foi formando (o quê, purer, Grünewald?),<br />

uma massa abstrata de vertigem se formava no ar (o quê, Kandinski?), e a filha do<br />

homem chegou gritando perto: "Tira o retrato da cabeça dele no teto!" (Beckett, talvez?)

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