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Seca mostra que o nada<br />
é o Nordeste<br />
O nada é o Nordeste. Tive esta sensação em 1963 no primeiro filme que fiz na<br />
vida, como assistente de Leon Hirszman, Maioria absoluta, sobre o analfabetismo e a<br />
fome. Tínhamos profunda atração pela miséria. A desgraça do Nordeste não nos atraía<br />
apenas por nosso humanismo crítico. Eu tinha fascinação por aquele mundo descarnado,<br />
feito de ossos e caveiras, onde alguma coisa de verdadeiro se passava, longe da vida<br />
gorda do Sul. A verdade é que tínhamos uma atração estética pela miséria e pelo<br />
deserto.<br />
E vasculhávamos aqueles campos vazios com o suspense de estarmos num<br />
filme de Antonioni, como se penetrássemos a sinfonia seca de um Cage, como se<br />
estivéssemos no centro de um Malevitch, um branco sobre branco suprematista. O vazio<br />
sempre foi uma fascinação para a arte moderna. Quantas sugestões de fim de mundo,<br />
quanta metáfora floria daqueles desertos, como cactos maravilhosos denunciando a<br />
vergonha da vida burguesa! O Nordeste tinha um rigor formal elegante, evocando João<br />
Cabral, o Waste land de Eliot e, suprema preferência minha daquela época, Samuel<br />
Beckett, o escritor irlandês que eu amava por seus seres mutilados, perdidos em saaras<br />
metafísicos, mendigos filosóficos, metáforas de um nada que a Europa nos mandava<br />
com o teatro do absurdo, o elogio pessimista de uma pós-modernidade que se<br />
anunciava. Eu procurava Beckett no sertão e via em cada camponês a possibilidade de<br />
um Wladimir, de Esperando Godot, de um Lucky, um Murphy, um Hamm, um Nagg,<br />
seres sofisticados em seus vácuos. Tínhamos a dor da miséria, mas queríamos que a<br />
tragédia se expressasse num momento de agonia densa, num instante de triunfo do<br />
sentido, numa metáfora que englobasse a condição humana e o absurdo do sistema<br />
agrário asiático-feudal. Com a câmera na mão, andávamos por rasos e favelas em busca<br />
do essencial. E víamos a trip muito doida dos perdidos da caatinga, como hippies<br />
agrários, vestidos de branco puído ou de negro encardido, baços, mortiços. Mas, se de<br />
longe eles tinham a grandeza do Homem ou do Ser, de perto era diferente. De perto,<br />
surgia diante da câmera apenas o pobre homem, roubado de tudo, até da clareza de sua<br />
dor. E só conseguíamos filmar vagos resmungos sobre "Deus quis assim" ou "o governo