Download - Xtecnologias
Download - Xtecnologias
Download - Xtecnologias
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Olhar de 350 anos<br />
Nós não olhamos As meninas; somos olhados. O quadro olha o espectador. As<br />
figuras nos olham do fundo de 300 anos e um frêmito de nudez nos toma, nos toma um<br />
alegre pânico, ali na sala. Vemos que estamos no lugar dos reis, ínfimos reflexos no<br />
espelho (ao fundo), que, exilados, nos contemplam. Estaria Velázquez pintando os<br />
soberanos ou pintaria a nós, que o vemos? Somos tomados pela sensação de que as<br />
regras do jogo foram mudadas: fomos lá para ver e somos vistos. Fomos lá para projetar<br />
nosso ideal em deuses e ninfas e somos olhados com severo desdém pela anã-bufa<br />
Maribarbola, pela arrogância da Princezinha, pela mirada técnica implacável do próprio<br />
Velázquez. E por que somos olhados? Que crime cometemos? Terá sido o crime de<br />
buscar a ilusão da arte, de sentir a erótica exaltação da beleza? Théophile Gautier,<br />
quando viu As meninas em 1819, gritou: "Mas onde está o quadro?" Está onde estamos<br />
nós; nós pintados por Velázquez fora da moldura, num eterno travelling movente de<br />
espectadores que passam. O quadro quer sair do mundo simbólico e invadir nosso real.<br />
E nosso real está onde? Não na metáfora que se ilude em preenchê-lo; nosso real está no<br />
irretratável, no eterno vazio dentro de nós.<br />
Neste quadro, Velázquez é um proto-impressionista que fura o tempo e chega<br />
até hoje. Prevê o impressionismo, mas vai muito além de captar o instante, o fugidio, o<br />
flagrante pré-fotográfico. (Notem que só a infanta e as meninas estão em foco absoluto.<br />
Os anões estão desfocados, um deles em movimento, e Velázquez e os outros em foco<br />
doce. Velázquez parece olhar por uma lente de cinema.)<br />
Neste quadro, Velázquez instala o insignificante como lugar privilegiado de<br />
um sentido misterioso. Velázquez ri do museu inteiro, ri do ideal da arte de atingir um<br />
sentido maior, um ideal de reis e de papas (quanto de eclesiástico ou monárquico haverá<br />
nas regras da estética ocidental?). Velázquez faz um quadro laico e democrático.<br />
Velázquez faz em 1652 a previsão de uma desistência que vemos hoje depois<br />
do fim da arte moderna. Velázquez rasga a fantasia dos artistas e nos joga no mundo dos<br />
conceitos; abre a obra como se faria 300 anos depois; prefigura Joyce, Brecht, criando<br />
uma metalinguagem que nos leva até mesmo à Rosa purpura do Cairo, com seus<br />
personagens querendo sair do mundo da nossa ilusão e entrar na quente realidade.