Marta <strong>de</strong> OliveiraAlvim (90) , personagem contraditória <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a escolha irónica donome, cujo significado ence<strong>rra</strong> a obsessão pela brancura que ele tanto<strong>de</strong>sejava. A caricatura (91) reflecte um tipo ina<strong>de</strong>quado ao lugar on<strong>de</strong> seencontra: os trajes à mo<strong>da</strong> europeia, o cabelo esticado, o uso rebuscado<strong>da</strong> língua portuguesa (92) .Alvim, auto-confiante e ingénuo, <strong>de</strong>seja pertencer ao universo docolonizado, afirmando-se como <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma família nobre portuguesa(93) , mas acaba por per<strong>de</strong>r a sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, fruto <strong>de</strong> um contextosocial opressivo e alienante, não se enquadrando nem no mundo do colonizado,nem do colonizador (94) . A ironia <strong>da</strong> sua posição como mensageiroe <strong>de</strong>fensor <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m que o rejeita atinge o seu ápice na missão<strong>de</strong> “catequisar o povo” nas “povoações, sanzalas e quimbos”. O seu fimserá trágico: acaba assassinado.A na<strong>rra</strong>tiva revela a expressão do profundo <strong>de</strong>sajuste do homem angolanono seu próprio espaço.Assim, <strong>de</strong>senha-se uma gran<strong>de</strong> e dolorosa comédia, em que todosparticipam: “não rindo, mas sofrendo. Sangrando. Por vezes <strong>de</strong> mãoscrispa<strong>da</strong>s. Em silêncio. E com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> protestar. Sim, algo <strong>de</strong> chaplinescovibra na transparência <strong>de</strong>ste caos organizado. E essa participação4690Müller-Bochat (1996:324) <strong>de</strong>staca os tipos <strong>de</strong> “simbiose cultural falha<strong>da</strong>” referindo: “o problema<strong>da</strong> indigestão intelectual <strong>de</strong> um indivíduo entre dois mundos culturais produziu tipos inesquecíveis tambémna literatura angolana. Limito-me a duas espécies <strong>de</strong> Dom Quixote, loucos ca<strong>da</strong> um à sua maneira, porterem servido a um i<strong>de</strong>al ridículo, a uma ilusão híbri<strong>da</strong>, em vez <strong>de</strong> uma tarefa séria e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira”. A <strong>de</strong>finiçãopo<strong>de</strong>r-se-á aplicar, tal como o autor supracitado faz, a Alvim. Muller-Bochat, Eberhard, “Tipos literários<strong>da</strong> simbiose cultural falha<strong>da</strong> na na<strong>rra</strong>tiva africana <strong>de</strong> expressão francesa e portuguesa”, in Cristovão,Fernando [et alli], <strong>Na</strong>cionalismo e regionalismo nas literaturas lusófonas, Lisboa, Edições Cosmos, 1997.91Ao longo dos tempos, tem sido comum o uso <strong>da</strong> caricatura para satirizar figuras ou questões <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> social e política. <strong>Na</strong> literatura, o aparecimento <strong>da</strong> caricatura remonta às comédias <strong>de</strong> Aristófanes, naantiga Grécia. Daí que a ela tenham recorrido os escritores que pretendiam traçar um quadro sociológicodo mundo contemporâneo.92O “palavrório” <strong>de</strong> Alvim em diálogo com o seu amigo Xavier dá origem a trocadilhos engraçados.93“Ai vai ele em passos <strong>de</strong> onça, cauteloso, para não pisar uma poça d´água e surgir em casa do parente,o doutor Costa Alvim, com polimento dos sapatos e a calça <strong>de</strong> fantasia respigados <strong>de</strong> lama. Trauteiaa discursata que ensaiou e faz man<strong>obra</strong>s <strong>de</strong> esgrima com a bengala. Ouvido atento não quer que ninguémo veja naquele propósito <strong>de</strong> luxo no Chinguar. Procura a escuridão. Até que enfim! Amanhã, há <strong>de</strong> passearcom o médico em ameno cavaqueiro, abancar no “Europa”, topar to<strong>da</strong> a gente em respeitosas boas-noites,e perguntar ao parente: “O que é que toma?” (p. 38).94O cómico <strong>de</strong> situação é obtido, por exemplo, quando Alvim procura ansioso o suposto <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte,recém chegado, <strong>da</strong> nobre família “Alvim”, mas na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> o pretenso parente <strong>da</strong> família <strong>de</strong> “gran<strong>de</strong>snomes <strong>de</strong> Portugal” respon<strong>de</strong>-lhe que vem do Alentejo, uma <strong>da</strong>s regiões mais pobres do país. Ou então,quando exibe a bengala ao amigo Xavier, dizendo tratar-se <strong>de</strong> um símbolo <strong>de</strong> nobreza, ao que o amigoreplica tratar-se apenas <strong>de</strong> um pau torto.E-book CEAUP 2007
<strong>Na</strong>(<strong>rra</strong>)ção satírica e humorística: uma <strong>leitura</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong> na<strong>rra</strong>tiva <strong>de</strong> Manuel Ruiindirecta do autor-na<strong>rra</strong>dor que dir-se-ia obscuro quando afinal se nosrevela por inteiro comprometido com o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong>ste mundo que incomo<strong>da</strong>”(Manuel Ferreira, Prefácio à 2ª edição <strong>de</strong> Regresso Adiado).Manuel Rui admitiria isso mesmo, dizendo que a sua sátira é “umaescrita chaplinesca” (95) , pois quando as pessoas estão a rir têm, necessariamente,que chorar.A corrupção, a ineficácia do sistema, a <strong>de</strong>sa<strong>de</strong>quação <strong>de</strong> terminologia(s),a <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> autoritarismos encontrará voz nas diferentes personagens<strong>de</strong> Manuel Rui.Massaud Moisés (1977:296) (96) <strong>de</strong>staca precisamente a “atitu<strong>de</strong>ofensiva” <strong>da</strong> sátira, que, tendo a crítica como “marca in<strong>de</strong>lével”, apresentaa insatisfação perante o estabelecido como “a sua mola básica”.Neste caso, a crítica aos diversos comportamentos (a)típicos <strong>da</strong> épocaprojectavam essa “insatisfação” perante o “mundo às avessas” (97) .Venâncio (1992b:51) enfatizaria duas tendências entre as manifestaçõescríticas: a primeira, visando “o exercício burocrático <strong>da</strong> actuação<strong>da</strong>queles que, vendo-se com algumas responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r”, usam--no abusivamente, e o “nascimento <strong>de</strong> uma nova burguesia”; a segun<strong>da</strong>tendência “crítica expressamente o sistema político-social implantadopelo MPLA” (98) .Em Quem me <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong> (1982), Crónica <strong>de</strong> Um Mujimbo (1989) e1 Morto & Os Vivos (1993), através duma ironia implícita, que nos relembraem diversas passagens Eça <strong>de</strong> Queirós, Manuel Rui crítica a ineficáciado sistema burocrático do po<strong>de</strong>r inserindo-se precisamente na primeiratendência (99) .95Op. cit. Entrevista em anexo, p. 165.96Massaud, Moisés, Dicionário <strong>de</strong> termos literários, São Paulo, Editora Cultrix, 1977.97<strong>Na</strong> literatura portuguesa, Camões (1598) refere-se à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> do seu tempo como um “mundoàs avessas” e <strong>de</strong>sconcertado: “Os bons vi sempre passar/ no mundo gran<strong>de</strong>s tormentos; / e, para mais meespantar, /os maus vi sempre na<strong>da</strong>r/ em mar <strong>de</strong> contentamentos”. Gil Vicente reconstrói uma visão satírico-dramática<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> portuguesa do século XVI. Eça <strong>de</strong> Queirós, provido <strong>da</strong> ironia e crítica social,<strong>de</strong>screve minuciosamente os ambientes que retratam a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> do século XIX.98Venâncio, José Carlos, Literatura e po<strong>de</strong>r na África lusófona, Lisboa, Ministério <strong>da</strong> Educação / Instituto<strong>de</strong> Cultura e Língua Portuguesa, 1992b.99Contrariamente a autores como Manuel dos Santos Lima, que através <strong>de</strong> <strong>obra</strong>s como Os Anões e osMendigos, acaba por se enquadrar na segun<strong>da</strong> tendência enuncia<strong>da</strong> por José Carlos Venâncio (1992b), <strong>de</strong>nunciandoa situação <strong>de</strong> Angola, a crítica às <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong> mundiais, nomea<strong>da</strong>mente na duali<strong>da</strong><strong>de</strong>: paísesricos vs países pobres, num claro <strong>de</strong>sequilíbrio on<strong>de</strong> o Terceiro Mundo sai per<strong>de</strong>dor, pela prepotência política<strong>da</strong>queles. Mas culpabiliza sobretudo as forças internas do MPLA pelo estado precário vivido no país.472007 E-BOOK CEAUP
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