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Na(rra)ção satírica e humorística: Uma leitura da obra narrativa de ...

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Marta <strong>de</strong> OliveiraAna Sá (2004:47) (208) aponta a trilogia “antepassados/ tradicionalistas/palavra” como característica <strong>da</strong> <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> tradição africana.Parece-nos <strong>de</strong> todo pertinente esta associação na <strong>obra</strong> Crónica <strong>de</strong> UmMujimbo (209) . É o mujimbo, o oral, em suma, a palavra que se sobrepõea tudo o resto.Atentemos, como tal, no final <strong>da</strong> <strong>obra</strong>. Ora à semelhança <strong>de</strong> Quemme <strong>de</strong>ra ser on<strong>da</strong>, também este se reveste <strong>de</strong> inevitável carácter simbólico(210) . Des<strong>de</strong> logo, a presença <strong>da</strong> “mais velha”, mãe <strong>de</strong> Feijó, que “ficouestática olhos para lá <strong>da</strong> nascente <strong>de</strong> uma cachoeira, <strong>de</strong>dos <strong>da</strong>s mãosna mesma embrulhados, tentativa <strong>de</strong> controlar soluços no abafo dobarulhar <strong>da</strong> chuva (211) como choro <strong>de</strong> avó antiga” (p. 158), evi<strong>de</strong>ncia areali<strong>da</strong><strong>de</strong> envolvente.Não será por acaso que a na<strong>rra</strong>tiva começa e termina com uma tempesta<strong>de</strong>(212) em aproximação, cujas relações metafóricas com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>vivencia<strong>da</strong> por Feijó são evi<strong>de</strong>ntes. Aliás, será a figura sábia <strong>da</strong> maisvelha Catarina (213) , a quem foi outorga<strong>da</strong> a ancestrali<strong>da</strong><strong>de</strong> própria do86208Sá, Ana Lúcia Lopes <strong>de</strong>, A Confluência do Tradicional e do Mo<strong>de</strong>rno na Obra <strong>de</strong> Uanhenga Xitu,Luan<strong>da</strong>, União <strong>de</strong> Escritores Angolanos, 2004.209Assim como em muitas outras <strong>obra</strong>s angolanas.210Po<strong>de</strong>mos também estabelecer a analogia com o final <strong>de</strong> O manequim e o piano, neste caso, surgeum figura misteriosa, “cega” e “mais velha” que parecia ser o guardião <strong>da</strong> casa, que Alfredo e Van<strong>de</strong>rtentavam registar: “o homem, <strong>de</strong> cabelo todo branco que apareceu ali no meio do capinzal não tinha osdois olhos, cego e aterrorizava Alfredo pelo vermelho <strong>da</strong>s cavernas oculares. Segurava com a mão direitaum pau para se guiar por um miúdo” (O manequim e o piano, p. 385). Desta forma, as páginas <strong>da</strong> <strong>obra</strong>são ence<strong>rra</strong><strong>da</strong>s envoltas no mistério <strong>de</strong>sta personagem [Repare-se que o facto <strong>de</strong> ser cego, reveste a personagem<strong>de</strong> simbolismo acrescido, pois o cego é “aquele que ignora as aparências enganosas do mundoe, graças a isso, tem o privilégio <strong>de</strong> conhecer a sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong> secreta, profun<strong>da</strong>, interdita ao comum dosmortais” (Chevalier et Gheerbrant: 1994: 180)]. O romance termina ain<strong>da</strong> com chuva. Chevalier, Jean etGheerbrant, Alain Dicionário dos simbolos, Lisboa, Teorema, 1994.211A água era na cosmogonia <strong>de</strong> Tales o primeiro elemento cosmogónico e o mais activo enquantocausa. Também na tradição oral africana, to<strong>da</strong>s as relações remontam à uni<strong>da</strong><strong>de</strong> primordial. I<strong>de</strong>m.212Em O Manequim e o Piano a chuva adquire enorme importância. Tanto Alfredo como Van<strong>de</strong>r iniciama sua esta<strong>da</strong>, na casa e na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, tomando banho <strong>de</strong> chuva, que po<strong>de</strong>mos interpretar como espécie<strong>de</strong> baptismo, o início <strong>de</strong> um novo ciclo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. A chuva é ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>staca<strong>da</strong> ao longo <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a na<strong>rra</strong>tivacomo elemento essencial aos dois protagonistas, estes referem o seu “cheiro”: “eu gosto do cheiro <strong>da</strong> chuvaaqui na tua te<strong>rra</strong> parece cheiro <strong>de</strong> mulher grávi<strong>da</strong>” (O manequim e o piano: 2005: 127). Repare-se nanoção <strong>de</strong> fertili<strong>da</strong><strong>de</strong> (espiritual e material) e origem proveniente <strong>da</strong> chuva (“mulher grávi<strong>da</strong>”). Para alémdisso, Van<strong>de</strong>r, à semelhança <strong>de</strong> Noíto <strong>de</strong> Rioseco, tem a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> aproveitar a água <strong>da</strong> chuva para preveniruma eventual falta <strong>de</strong> água (i<strong>de</strong>m:187). Para Alfredo a chuva era factor <strong>de</strong> segurança e confiança: “arazão do seu medo. Era porque não havia chuva” (i<strong>de</strong>m:90).213Símbolo <strong>da</strong> tradição e superstição angolanas, relembra-nos Noíto <strong>de</strong> Rioseco ou ain<strong>da</strong> a tia <strong>de</strong>Alfredo <strong>de</strong> O manequim e o piano. Recor<strong>de</strong>-se a importância que os “mais velhos” <strong>de</strong>sempenham na sabedoriaancestral africana. Tal como Ki-Zerbo afirma, a tradição oral constituía [e nalguns casos ain<strong>da</strong>E-book CEAUP 2007

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