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não há argumento, lembrou Gombrich, portanto com o sobrenatural<br />
(a religião) não há conversa — e com isso, o sobrenatural se coloca fora<br />
da cultura. E a ideologia é a política da mão oculta: estendo esta mão,<br />
com a qual faço isto, enquanto mantenho oculta a outra mão, que<br />
desfará o que a primeira diz fazer e que já faz o contrário do que a<br />
primeira indica fazer — e no entanto uma conversa se faz sempre com<br />
as duas mãos visíveis. (O obsceno nunca esconde uma de suas mãos:<br />
as duas estão sempre à vista, bem à vista). A ideologia e a religião<br />
reconhecem o mal e o promovem, o afirmam para poderem dizer que<br />
o combatem; a cultura, pelo menos a cultura viva, reconhece a<br />
negatividade e o incorpora no seu contrário. Isto significa que a cultura<br />
não é apenas positividade e não permite que se diga que a arte é<br />
estranha à negatividade. Apenas, a negatividade na arte não é<br />
objetivável e objetificável do modo como comumente se pensa.<br />
Abaixo daquele patamar de exigência, não está a arte: está o<br />
divertissement, ficou dito. Outra maneira: abaixo daquele patamar de<br />
exigência formulado por Stockhausen está a diferença, no músico, no<br />
artista, como enuncia Daniel Barenboin, entre a arte como modo de vida<br />
e a arte como meio de vida. Quando a Eroica foi executada pela primeira<br />
vez não havia músico profissional de orquestra. Hoje, há. E isso faz<br />
parte do sistema social, quer dizer, da cultura. É justo que os músicos<br />
tenham emprego de tempo integral, o ano todo, e ganhem por isso. E<br />
bem. E se espera que retribuam tocando bem. Isso não basta, no<br />
entanto. E isso não deve influir sobre a ética própria da música. Música<br />
não se executa apenas com o cérebro. Música se executa com o corpo<br />
todo envolvendo-se no processo, como quer Barenboin. E é isso que<br />
faz para ele a diferença entre a música, a arte como modo de vida (a<br />
música entranhada no corpo, a única opção possível cultura subjetiva)<br />
e a música, a arte como meio de vida: a arte como maneira de ganhar o<br />
pão de cada dia (cultura objetiva). Ambos modos deveriam fundir-se<br />
num só. Mas, o primeiro é a meta — que Stockhausen percebeu ali,<br />
naquele ato inadmissível que destrói as Torres, e não em muitas outras<br />
instâncias.<br />
<strong>CULTURA</strong> E NEGATIVIDADE 115<br />
INTENSIDADE