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“<strong>CULTURA</strong> É A REGRA; ARTE, A EXCEÇÃO”<br />
“Cultura é a regra; arte, a exceção, diz um personagem de<br />
Godard 56 . A arte tem sido vista e tem visto a si mesma como um<br />
exercício de violação das regras desde o último quarto do século 19<br />
e quis ser isso pelo menos desde a Renascença. Não há motivo para<br />
recusar-lhe essa representação. Não basta, porém, reconhecer que<br />
a arte se tornou um exercício de violação das regras da arte: há<br />
normas de outro campo que ela viola. A ideia tradicional — e, podese<br />
dizer hoje, uma ideia mais politicamente correta do que outra coisa<br />
— de que arte também é cultura, sendo de bom senso, antes<br />
confunde o quadro do que esclarece as coisas. Indo um pouco mais<br />
longe do que se disse no capítulo inicial deste livro, essa não é uma<br />
ideia que sequer permite entender o mundo, menos ainda atuar<br />
sobre ele. A arte é vizinha da cultura mas as aproximações entre<br />
uma e outra acabam na zona movediça que de algum modo delimita<br />
os territórios de uma e outra. As diferenças entre cultura e arte são<br />
hoje mais significativas que suas semelhanças — e agora é possível<br />
dizê-lo porque o espírito do tempo, que não existe mas está sempre<br />
aí, permite e convoca a busca das diferenças muito mais que a das<br />
proximidades e das fusões, essa operação típica da modernidade<br />
em todas suas dimensões, da política à filosófica, geradora de tantos<br />
equívocos e angústias. Mas, localizar as diferenças quando se está<br />
acostumado e acomodado na ideia de que a tônica é sempre dada<br />
pelas identidades, pelas igualdades, pela condição de tudo ser igual<br />
a tudo, é tarefa árdua. A noção mesma de uma inequação entre<br />
cultura e arte parece um paradoxo. É adequado que assim seja: o<br />
paradoxo é próprio da contemporaneidade. Então, em quê,<br />
exatamente, a arte se distingue da cultura, contraria o desenho<br />
cultural?<br />
56 Lévi-Strauss, em Les structures élémentaires de la parenté (Paris:PUF) escreve: “Partout où la<br />
règle se manifeste, nous savons avec certitude être à l’étage de la culture”.<br />
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