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vê-los diluídos numa tendência civilizatória mais ampla que, de modo<br />
compreensível, essa política entende como sendo a sua própria ou que<br />
identifica mais com sua própria cultura do que com outras. O ideal<br />
francês claramente não é o do multiculturalismo mas o de um<br />
universalismo que funcione como integrador de traços identitários<br />
originariamente distintos e que o faça, se não de modo abrangente<br />
e total , pelo menos em larga medida. A alegação e motivação iniciais<br />
para a nova lei foram o respeito às tradições leigas que, na França, pedem<br />
uma república de todo alheia à religião e ao sectarismo religiosos e<br />
alheia, sobretudo, ao que podem ser consideradas tentativas de<br />
proselitismo (o porte de símbolos religiosos como o próprio véu<br />
islâmico, o kippa judaico e a cruz cristã, que fazem propaganda de seus<br />
respectivos ideários pelo menos num sentido particular, como<br />
entendido pelo legislador francês: “pertenço ao grupo escolhido que se<br />
abriga sob este símbolo, você não”, reconhecendo-se que, nesse<br />
aspecto, as religiões funcionam como o contrário das culturas: estas<br />
buscam aproximar uns dos outros, apesar do antagonismo ou por meio<br />
dele, enquanto as religiões decididamente procuram afastar todos de<br />
todos, algo de todo inaceitável no espaço público francês). As censuras<br />
feitas ao legislador francês por ter-se decidido em favor dessa medida<br />
(censuras que iam do alegado desrespeito aos direitos culturais dos<br />
imigrantes ao racismo puro e simples contra esses) ignoram que ao<br />
assim proceder a França estava reatando com sua própria tradição de<br />
universalismo civilizatório que remonta aos séculos 18 e 19, manifesta<br />
no debate com os <strong>def</strong>ensores alemães da Kultur como se viu<br />
anteriormente. E de um modo ou de outro, a decisão francesa põe em<br />
evidência o componente crítico, ausente do habitus (da tradição, dos<br />
costumes de uma comunidade seja qual for) que a cultura deve ter<br />
para ser como cultura considerada — aqui, um componente crítico<br />
pelo menos em relação ao que lhe é estranho (aquilo que vem de fora,<br />
de outra cultura) e pode ir contra seus princípios. A obra de cultura de<br />
que falava Bourdieu em contraposição ao habitus (ele que não viveu<br />
para participar do debate sobre o véu) não é então apenas aquela que<br />
contém as vagas características da produção elevada, do espírito refinado<br />
mas a que se <strong>def</strong>ine também pela sua capacidade de cortar o terreno<br />
comum das ideias assentadas e de revolver o solo repisado, feito de<br />
camadas de detritos ali acumuladas passivamente ao longo do tempo,<br />
em busca daquilo que possa assegurar o melhor desenvolvimento do<br />
ser humano e a ampliação de sua esfera de presença, não seu<br />
estreitamento. Para buscar esse ideal, uma cultura localizada, identitária<br />
e que se quer afirmar sobre as outras, nessa sua forma possível de<br />
NEM TUDO É <strong>CULTURA</strong> 41