You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
a cultura tem seu lugar intramuros enquanto lá fora reina o caos —<br />
imagem de dois mundos que não se comunicam e não querem se<br />
tocar. A noção central aqui — e a esperança — é a da cultura como um<br />
refúgio, um mundo à parte.<br />
A segunda representação em que me detenho é aquela legada<br />
pelos discursos bolcheviques mais radicais e exemplificada na ideia da<br />
queima dos museus, imagem que traduzia a ânsia e a obsessão de<br />
acabar com o que viam como a cultura velha, burguesa, a impedir o<br />
surgimento do novo homem, mas também a crença de que a cultura,<br />
entendida como uma nova cultura, poderia servir de parteira do novo<br />
homem e da nova sociedade. A cultura velha era a violência assim<br />
como a cultura nova seria, ela também, uma violência, aquela opressora<br />
e esta, necessária e supostamente libertadora. Como prescreveu Georg<br />
Lukacs 49 , a nova cultura era inconcebível a não ser como revolução, e a<br />
revolução era a violência (outro nome da violência, nesse sistema<br />
ideológico: “política revolucionária de massa”) que seria legítimo opor<br />
à violência da política estabelecida. Representação que fez e faz cócegas<br />
em muito espírito contemporâneo. Independentemente de uma<br />
discussão sobre o conteúdo e a justificativa dessa proposição, trata-se<br />
de uma representação formalmente voluntarista da cultura e que acima<br />
de tudo, como se exporá mais adiante, evidencia, aos olhos de hoje,<br />
um desconhecimento da dinâmica cultural revelado explicitamente nos<br />
manuais que ditavam os caminhos necessários da felicidade ordenada,<br />
no duplo sentido permitido pelo termo: felicidade “regulada” e<br />
“imposta”. Não conheciam como funcionava a cultura estabelecida, a<br />
cultura objetivada, que estava ali, e desconheciam, portanto, como<br />
poderia constituir-se e operar a cultura que buscavam implantar e<br />
desenvolver e que naquele estágio se poderia descrever como sendo a<br />
cultura subjetiva dos bolcheviques — embora certamente sentissem<br />
eles, os bolcheviques, um autêntico horror epistemológico e ontológico<br />
à menção da palavra “subjetiva”, se a ouvissem...<br />
Uma variante dessa segunda representação é, do mesmo modo,<br />
suficientemente conhecida. Forneceu-a Paul Joseph Goebbels, educado<br />
nas universidades de Bonn, Berlim e Heidelberg (é sempre útil recordar<br />
essa qualificação), líder do partido nacional-socialista de Berlim a partir<br />
de 1926 e membro pelo voto popular do parlamento alemão, o<br />
Reichstag, em 1928 50 . A imagem que busco recordar, como já se sabe, é<br />
49 Histoire et conscience de classe. Paris: Gallimard, s.d.<br />
48 É relevante, neste contexto, recordar que a 1 de maio de 1945, no bunker de Berlim em<br />
que também se encontrava Hitler, depois de mandarem matar seus seis filhos com uma<br />
injeção letal aplicada por um médico da SS Goebbels e sua mulher ordenarem que um<br />
ordenança os matasse a ambos com um tiro.<br />
<strong>CULTURA</strong> E NEGATIVIDADE 89<br />
SEGUNDA:<br />
A <strong>CULTURA</strong> É A<br />
VIOLÊNCIA.