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A CULTURA E SEU CONTRÁRIO TC def.pmd

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de direitos quando posso distinguir os deveres correspondentes: em<br />

princípio, sem deveres não há direitos. Há uma série de atos culturais,<br />

de atos do cultural, que são claramente deveres culturais: o dever de<br />

tolerar 63 (de algum modo ou até determinado limite) a diversidade<br />

(tolerar aquele que não se veste como eu, tolerar aquele que comparece<br />

no chamado ocidente a uma reunião formal com seu traje tribal de<br />

gala que nada tem a ver com meu paletó e minha gravata ocidentais<br />

de gala); tenho o dever cultural da <strong>def</strong>erência em situação social ainda<br />

que a isso não me obrigue a cidadania (várias questões de trânsito<br />

são questões culturais mais amplas antes de serem uma questão<br />

mais estreita “de cidadania” ou são questões de cidadania porque<br />

são questões culturais, não por outra razão). O problema surge<br />

quando me pergunto quais os deveres diante da arte: tenho o dever<br />

de gerar cultura, de produzir ou reproduzir o cultural, numa situação<br />

social: não tenho o dever de gerar arte, em nenhuma situação social.<br />

A geração da arte em situação social é um plus, um suplemento,<br />

sequer um complemento: um acessório: a pessoa que numa reunião<br />

social souber dizer um poema será vista de modo distinto, será mais<br />

bem vista que outra, tornará a noitada mais agradável e significativa;<br />

mas ninguém está obrigado a dizer um poema num encontro social<br />

(não mais, em todo caso — não mais, infelizmente): isso é diferente<br />

do dever de comer, à mesa, conforme ditam as regras da<br />

convivialidade: se eu comer com os dedos num jantar em alguma<br />

cidade cosmopolita poderei ser convidado a deixar a mesa: se eu<br />

não disser um poema ao final desse jantar não serei convidado a<br />

deixar a sala. Se não há um dever diante da arte (dever para com a<br />

arte é outra coisa) é possível que não haja um direito à arte: é possível<br />

que o sistema do direito à arte, diversamente do direito à cultura,<br />

seja um sistema feito de assimetrias — e o problema é que a forma<br />

do direito hoje, a forma jurídica, é feita de simetrias: é uma forma<br />

simétrica. Se não tenho dever diante da arte, terei direito à arte?<br />

Não há direito ao sexo porque não há um dever do sexo: a expressão<br />

“deveres conjugais”, no sentido de obrigatoriamente fazer sexo com o<br />

parceiro, é, a rigor, uma força de expressão, falácia: não há deveres<br />

conjugais, há desejos conjugais, por estranha que seja a expressão:<br />

se o desejo cessar, não há como obrigá-lo a manifestar-se: isso pode<br />

dar margem, no limite, à cessação do laço jurídico do casamento (um<br />

motivo longe de ser límpido e pacífico) — mas neste caso a simetria se<br />

processa, se o fizer, por outras categorias e vias: “deveres conjugais”<br />

63 Hoje procura-se mesmo superar essa ideia com outra mais ampla: a de aceitação, não mais<br />

apenas a de tolerância.<br />

126 A <strong>CULTURA</strong> E <strong>SEU</strong> <strong>CONTRÁRIO</strong>

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