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expressão ainda ofende e irrita, pode-se trocá-la por outra: a obra de<br />
arte é transcendente em relação a seus fins: transcende todo e qualquer<br />
fim que se lhe possa propor, em toda e qualquer situação: se não o<br />
fizer, não é obra de arte: a obra de arte aceita a contingência do devir,<br />
à qual se opõe a finalidade da cultura. A resistível ascensão de Arturo Ui,<br />
de Bertold Brecht, transcende sua utilidade como instrumento de<br />
denúncia do nazismo e do capitalismo e como instrumento de<br />
reforço da ideologia marxista ou comunista ou soviética: outro modo<br />
de dizer que essa peça é a rigor indiferente a qualquer desses usos que<br />
dela se queira fazer: indiferente, isto é, continuará a ser ela mesma<br />
independentemente desse uso e continuará, mais e melhor, a ser diferente<br />
dela mesma independentemente desse ou qualquer outro uso. Nesse<br />
sentido, A resistível ascensão de Arturo Ui é tão gratuita quanto qualquer<br />
pintura surrealista do avida dollars que foi Salvador Dali segundo ele mesmo,<br />
o que significa que aquela peça teatral é tão transcendente como esta tela<br />
pintada 64 . Um programa para o cultural utilitário será um programa<br />
instrumentalizante (educativo, profissionalizante, socializante, econômico):<br />
um programa para a arte transcendente terá a ver fundamentalmente<br />
com o gosto, quer dizer, com a ampliação da esfera de presença do ser<br />
(Montesquieu) — ampliação é devir, com toda sua contingência — e<br />
nada mais que isso, em princípio. A ampliação da esfera de presença do<br />
ser não é feita com um propósito <strong>def</strong>inido (frequentar a arte para<br />
instruir-se, para elevar o próprio espírito, é o pior dos filistinismos, afirma<br />
Hannah Arendt): a ampliação da esfera de presença de meu ser é uma<br />
operação intransitiva: não sei aonde isso leva, não pretendo ir a lugar<br />
algum, apenas realizo essa operação. Se for melhor dizê-lo assim, a arte<br />
não é gratuita: é intransitiva. Educar com arte para aprimorar o cidadão<br />
ou para produzir o cidadão é algo de enorme estreiteza intelectual<br />
além de uma violação ao programa próprio da arte. Nesse aspecto, se<br />
o programa para o cultural tem a ver com a ética e a lógica, o da arte<br />
será essencialmente estético 65 .<br />
64 Em 1720 Watteau pintou uma tela tendo por tema a fachada e o interior da galeria de arte<br />
de seu marchand, Gersaint, que a exibiu do lado de fora da loja como se fosse uma placa<br />
comercial. Em seu livro After the End of Art, Arthur Danto refere-se a esse caso como<br />
sendo um exemplo de contrariedade do primeiro dogma da estética segundo o qual a<br />
arte não serve a qualquer uso prático. A alegação é imprópria. Primeiro, dar um uso a<br />
uma obra de arte não significa que a arte tenha um uso ou seja feita para um certo uso<br />
ou se esgote nesse uso (uma placa comercial comum esgota-se nessa finalidade). Depois,<br />
cabe discutir sobre o real grau ou índice de artisticidade dessa peça de Watteau... e<br />
várias outras de suas telas...<br />
65 Utilizo essa palavra nos termos do sistema semiótico de Ch. S. Peirce, mais do que no<br />
sentido comum pelo qual ela se refere à percepção pelos sentidos. Em Peirce, o icônico,<br />
domínio do estético, também se vincula ao sensorial mas o ultrapassa para <strong>def</strong>inir-se,<br />
antes, pelo abdutivo e por tudo aquilo que se distingue do simbólico e do indicial.<br />
“<strong>CULTURA</strong> É A REGRA; ARTE, A EXCEÇÃO” 129