Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
O DIREITO<br />
À <strong>CULTURA</strong><br />
UM CASO FELIZ<br />
a cultura porque, como aprendi com Jean-Luc Godard, o Estado não<br />
pode amar. E a cultura, em todo caso a melhor parte da cultura que é a<br />
arte, é uma questão de amor. Coincidentemente, ou talvez não seja<br />
mera coincidência, também um autor que citei aqui várias vezes,<br />
Antonio Negri, diz hoje que o poder da multidão é sua capacidade de<br />
amar, poder que ele por inferência não enxerga no Estado — o amor,<br />
essa força capaz de criar e implementar o desejo de emancipação com<br />
o qual Estado tal como existe não pode sequer sonhar. O conceito de<br />
multidão por ele manipulado é na verdade discutível e não cabe<br />
descartar a desconfiança de que por trás dessa ideia de multidão se<br />
esgueira para dentro da nova arquitetura conceitual desse autor as<br />
velhas ideias anti-individualistas, antidireitos subjetivos (entre eles o<br />
direito à cultura singular) e pró-disciplinares, pró-autoritárias por ele<br />
<strong>def</strong>endidas em seus tempos de militância clandestina na Itália convulsa<br />
dos anos 70. Mas, que se registre pelo menos essas duas vozes que não<br />
hesitam hoje em afirmar uma condição, para a cultura e a política<br />
cultural, desconhecida pelo Estado, agora como antes: o amor. A<br />
sociedade civil em expansão não é impermeável a esse sentimento e é<br />
possível pensar numa sociedade civil mundial baseada numa concepção<br />
ecológica da cultura (como aliás reconhece a Agenda 21 no artigo 2 de<br />
sua declaração de princípios) que se torne interlocutora do atual<br />
ordenamento global — uma sociedade civil animada por um espírito<br />
de governança cosmopolita, culturalmente leigo, isto é, realmente civil.<br />
Uma sociedade que nos faça esquecer esses ídolos que exigem seus<br />
sacrifícios de sangue: as fronteiras — todas elas, as geográficas, as<br />
políticas, as culturais.<br />
84 A <strong>CULTURA</strong> E <strong>SEU</strong> <strong>CONTRÁRIO</strong><br />
* * *<br />
Disse de início que não se trata exatamente de pregar a eliminação<br />
total do Estado. Trata-se, antes, de construir um novo modelo de Estado<br />
capaz de abrir espaço para a realidade contemporânea, que é a da<br />
sociedade civil, um Estado que seja para a sociedade civil e não contra<br />
ela. No campo da cultura, temos no Brasil um embrião do que pode ser<br />
esse Estado e essa sociedade civil cultural, um embrião exemplar na<br />
figura do SESC, Serviço Social do Comércio. O SESC é uma organização<br />
da sociedade civil, quer dizer, não regida diretamente pelo estado, mas<br />
que existe porque existe uma disposição legal que <strong>def</strong>ine um tributo<br />
(atribuição do Estado) capaz de mantê-la viva: aquele tributo que para<br />
o SESC recolhem os que trabalham no comércio. O SESC é outra forma<br />
de delegação à sociedade civil de um poder e uma atribuição do Estado,